Em alusão ao Dia Mundial da Prevenção do Suicídio, celebrado em 10 de setembro, o Conselho Regional de Psicologia do Distrito Federal (CRP 01/DF) convidou autores do guia “Orientações para a atuação profissional frente a situações de suicídio e automutilação", publicado pelo Conselho em 2020 (disponível aqui), para compartilharem reflexões sobre o tema a partir de seus locais de atuação profissional, vivências e linhas de pesquisa atuais.
Encerrando a nossa série, compartilhamos hoje o artigo da pesquisadora Sílvia Reis, que é especialista em Saúde da Família e Comunidade (Escola GHC) e mestre em Psicologia Clínica e Cultura (UnB). Foi conselheira do 16º Plenário do CRP 01/DF (2019-2022), onde também atuou como coordenadora da Comissão Especial de Psicologia na Saúde. Atualmente, é analista técnica de políticas sociais no Ministério da Saúde e graduanda em Pedagogia.
No artigo, Sílvia Reis trata da responsabilidade coletiva sobre o cuidado com o acesso de crianças e adolescentes às plataformas digitais e outros recursos on-line, abordando a história de um adolescente de 16 anos que marcou sua formação e suas reflexões sobre o tema prevenção do suicídio.
Confira:
Em 2006, no Rio Grande do Sul, um adolescente de 16 anos foi apoiado e incentivado, por meio de fóruns em uma rede social, a cometer suicídio. Ele estava em internação domiciliar por indicação dos profissionais que o acompanhavam justamente em função do risco de suicídio já identificado. Estava sendo cuidado em um ambiente relativamente protegido. Não foi possível protegê-lo, no entanto, dos riscos da internet.
À época, eu estava mais ou menos na metade da minha graduação em Psicologia e fiquei profundamente impactada com essa situação. Até então, eu nunca havia pensado que a internet poderia expor crianças e adolescentes a riscos dessa magnitude. Além disso, o adolescente era filho de uma psicóloga e professora de Psicologia querida por muitos, e paciente de um reconhecido psicanalista gaúcho.
Como profissionais da saúde mental, sabemos que estamos todos sujeitos a perder pacientes dessa forma. Como viventes, também sabemos que estamos sujeitos a perder familiares e amigos assim. Até mesmo nós podemos flertar com essa possibilidade em algum momento de sofrimento intenso. Sim, sabemos. Mas, para mim, foi (e ainda é) muito triste essa constatação.
Lembro até hoje de ter lido uma entrevista concedida pelo psicanalista que o atendia, na qual ele falava de maneira muito sensível sobre o ocorrido. Infelizmente não a localizei para compartilhar aqui. Mas dessa tentativa de encontrá-la vieram diversos outros achados: entrevistas mais recentes de familiares, CDs lançados postumamente com as músicas produzidas por Yonlu — pseudônimo que o adolescente usava na internet e com o qual assinava suas músicas —, além de um longa-metragem que conta a sua história.
Nesse caso, assim como em tantos outros, embora a internet tenha sido, ao final, cenário de morte, ela não foi só isso. Foi também cenário de muitos encontros. Foi onde esse adolescente artista, que nos deixou músicas, textos e fotografias de sua autoria, viveu e exerceu um tanto da sua criatividade. Digo isso porque as telas e a internet cumprem muitas funções no social, inclusive a de ajudar a fazer laços quando o sujeito tem dificuldade de fazê-los de outra forma. Poderíamos colocar as tecnologias no lugar do inimigo, mas não é tão simples assim. Muitas vezes não é óbvio quando limites importantes estão sendo ultrapassados e passam a beirar a insegurança.
Estamos em 2025 e é urgente proteger crianças e adolescentes dos riscos que a internet pode representar: exposição a conteúdos inapropriados (violência, discurso de ódio, desinformação ou informações não adequadas à idade etc), ciberbullying e violência virtual, acesso a jogos de azar, exposição de informações pessoais, exploração e assédio, propaganda infantil ilegal, desafios virtuais perigosos. Recentemente, foi publicada uma reportagem sobre casos de adolescentes que compartilham pensamentos autodestrutivos com chats de inteligência artificial (acesse aqui).
Cabe destacar que as plataformas de redes sociais e de inteligência artificial precisam assumir a sua parcela de responsabilidade, assim como o Estado. Não é possível que as famílias assumam sozinhas a função de proteger as crianças e adolescentes. Famílias que, em sua maioria, trabalham excessivamente para tentar garantir um mínimo de dignidade e que contam com as telas como rede de apoio. Rede de apoio, aliás, que não deveria ser luxo nem privilégio. Educar e proteger as crianças e adolescentes é (ou deveria ser) tarefa de todos nós, cidadãos brasileiros, com filhos ou sem.
Como sociedade, demos um primeiro e importante passo no sentido da regulação das plataformas digitais e redes sociais, com a aprovação do PL 2.628/2022, que dispõe sobre a proteção de crianças e adolescentes em ambientes digitais. A proposta estabelece mecanismos de verificação de idade, restrições de acesso a conteúdos impróprios, regras mais rígidas sobre publicidade dirigida e maior responsabilização das plataformas quanto à segurança dessa população. Também foi publicado, pelo Governo Federal, o Guia sobre usos de dispositivos digitais por crianças e adolescentes (acesse aqui), que traz recomendações que dialogam com essa problemática que se coloca para famílias e educadores.
Nesse contexto, a Psicologia precisa se posicionar enfaticamente. Não basta acolher os sofrimentos individuais em consultório ou em serviços públicos de saúde: é preciso também atuar na defesa de políticas que protejam a infância e a adolescência dos impactos nocivos das plataformas digitais. É preciso compreender esse fenômeno como um sintoma produzido coletivo e socialmente e, da mesma forma, deve ser enfrentado.
>>> Caso se encontre em um momento de intenso sofrimento psíquico, é recomendado que não se isole em suas dores. Busque compartilhar o que está passando com profissionais que estejam capacitados para auxiliá-la(o).
>>> Um dos locais de escuta disponíveis gratuitamente em todo o Brasil é o Centro de Valorização da Vida (CVV). O atendimento do CVV é realizado pelo telefone 188 (24 horas por dia e sem custo de ligação), chat, e-mail e pessoalmente em alguns endereços. Saiba mais em: https://cvv.org.br/
#DescreviParaVocê: card colorido, predominantemente nas cores lilás e amarelo, destaca o dia 10 de setembro como data em que se chama a atenção para a prevenção do suicídio. Na imagem, é destacado um trecho do artigo e a foto da autora, além de constar a marca gráfica do CRP 01/DF.