No dia 20 de junho, é celebrado o Dia Mundial das Pessoas Refugiadas, uma data instituída pela Organização das Nações Unidas (ONU) para conscientizar sobre a situação de milhões de pessoas que são forçadas a deixar seus países de origem em razão de conflitos, perseguições ou crises humanitárias.
No campo da Psicologia, o trabalho com pessoas refugiadas demanda um olhar sensível para os impactos psíquicos do deslocamento forçado, da perda de vínculos e da reconstrução da identidade em contextos de acolhimento frequentemente marcados por xenofobia, racismo e outras formas de opressão. Além de oferecer escuta qualificada, a(o) profissional de Psicologia é chamada(o) a atuar pela autonomia dos sujeitos, reconhecendo suas histórias, desafios, saberes e potencialidades.
Nesta série de entrevistas, convidamos profissionais de diferentes áreas que atuam junto a pessoas refugiadas para compartilhar experiências e reflexões sobre o tema. Hoje, publicamos a entrevista concedida pela psicóloga Gabriela Carvalho Teixeira (CRP 08/34768). Especialista em Gestão de Políticas Públicas em Saúde (FIOCRUZ Brasília), Gabriela Teixeira atua como supervisora em saúde mental na organização “Médicos Sem Fronteiras” na Palestina. Foi coordenadora do Núcleo de Psicologia e Migrações (NUPSIM/CRP 08/PR) e da Frente Nacional pela Saúde de Migrantes (FENAMI), além de vice-presidente do Conselho Estadual dos Direitos dos Refugiados, Migrantes e Apátridas (CERMA/PR) na gestão 2022-2023.
Confira:
1) Quais são os principais impactos psicológicos enfrentados por pessoas refugiadas ao longo do processo de deslocamento e reassentamento?
Os deslocamentos forçados, especialmente no contexto das migrações internacionais contemporâneas, não se restringem a um movimento geográfico apenas, tratam-se de atravessamentos existenciais que mobilizam rupturas profundas nos modos de estar no mundo. As pessoas em refúgio experienciam uma reconfiguração radical da vida, marcada pela perda — muitas vezes abrupta e violenta — dos vínculos afetivos, das referências culturais, dos lugares de pertencimento e das formas simbólicas que sustentam a subjetividade.
É nesse cenário que a condição de migrante forçado precisa ser compreendida como uma experiência potencialmente desorganizadora do ponto de vista psíquico. O exílio não implica apenas a saída de um território físico, mas também a desterritorialização do sujeito de seus modos habituais de significar o mundo. A travessia migratória é, portanto, também uma travessia psíquica, marcada por perdas simbólicas e concretas, o que pode gerar estados de sofrimento intenso e, por vezes, invisibilizados.
Tais experiências não se dão de forma isolada. Afetam não apenas os sujeitos diretamente deslocados, mas também suas redes — familiares, comunitárias e institucionais — tanto nos contextos de origem, quanto nos de acolhimento. Trata-se de um fenômeno em que os impactos se inscrevem nos corpos e na linguagem, mas também nas instituições e nos laços sociais. Nesse sentido, o sofrimento psíquico dos diversos grupos migrantes precisa ser escutado em sua complexidade histórica, política e social, e não reduzido a diagnósticos patologizantes ou a respostas meramente assistencialistas.
Na 17ª Conferência Nacional de Saúde (2023), pela primeira vez no histórico de conferências, houve a participação de uma delegação de pessoas migrantes — resultado das mobilizações impulsionadas pela Frente Nacional pela Saúde de Migrantes (FENAMI) na 1ª Conferência Nacional Livre de Saúde das Populações Migrantes — marcando um movimento político e simbólico fundamental: trazer para o debate no campo da saúde a compreensão da migração como um determinante social da saúde. Esse reconhecimento traz à cena os atravessamentos por múltiplas formas de violência — como conflitos armados, violações de direitos, perseguições, violência sexual, tráfico de pessoas e extrema vulnerabilidade socioeconômica — como elementos que produzem sofrimento e desamparo.
A saúde mental, nesse contexto, deve ser pensada a partir da escuta da potência do sujeito em reconstruir sentidos, ainda que sob condições adversas. A clínica das migrações nos convoca a uma ética do acolhimento que considere os efeitos da descontinuidade simbólica, o impacto da exclusão e a importância de espaços onde a experiência possa ser nomeada, reconhecida e, eventualmente, elaborada. O trabalho com essas populações convoca a escuta do que é estrangeiro em cada sujeito e daquilo que, ao ser deslocado, convoca uma reconfiguração ética da própria clínica, do cuidado em saúde e das políticas públicas.
2) Como os serviços de saúde podem se adaptar para atender às necessidades específicas das populações refugiadas, considerando barreiras culturais e linguísticas?
Diversas questões emergem do encontro entre saúde e cultura. Há aspectos simbólicos e culturais a respeito do processo de saúde/doença. Aos serviços de saúde, é importante o reconhecimento da diversidade de sentidos atribuídos ao sofrimento, cuidado e tratamento. Diversidade que convoca a reinvenção e adaptação da prática, a fim de promover escutas culturalmente sensíveis. Isso implica não apenas superar barreiras linguísticas, mas criar espaços de acolhimento que respeitem os marcadores culturais, de gênero, raça e classe. A formação de profissionais para uma escuta culturalmente sensível e a presença de mediadores culturais — que atuem para além da tradução da língua, trazendo também a cultura para o atendimento em saúde — são estratégias essenciais.
Promover o cuidado em saúde para pessoas migrantes e refugiadas demanda que os protocolos que orientam os serviços tenham abertura para contemplar concepções de cuidado diversas, a fim de que respeitem símbolos culturais, algo que, por exemplo, já é preconizado enquanto elemento estruturante da Política Nacional de Atenção Básica.
O encontro com as populações migrantes no campo da saúde convoca o reconhecimento da diversidade cultural, dos atravessamentos históricos e das violências simbólicas que compõem a experiência migratória. É necessário repensar o próprio modo como a saúde é concebida e praticada nos serviços públicos, ampliando o olhar sobre o sofrimento e incorporando práticas de cuidado culturalmente sensíveis. Isso exige que os profissionais estejam preparados para escutar os sentidos que cada sujeito atribui à sua dor e à sua trajetória.
A barreira linguística, por si só, já se coloca como um entrave concreto no processo de acesso à saúde. Mas há outras barreiras, como o desconhecimento das formas de organização do SUS, medo comum em procurar serviços básicos devido à constante estigmatização que sofrem durante os atendimentos, e o silenciamento gerado por experiências de xenofobia e/ou racismo nos serviços de saúde. Nesse sentido, a presença de mediadores culturais nos dispositivos pode ser um recurso potente, especialmente quando inseridos nas Redes de Atenção à Saúde (RAS) e à Saúde Mental (RAPS).
As práticas de cuidado também precisam considerar os marcadores sociais que atravessam os corpos migrantes — em especial, gênero, raça, classe, orientação sexual. Mulheres migrantes, por exemplo, estão expostas a múltiplas vulnerabilidades e frequentemente são invisibilizadas nas políticas públicas. Garantir sua inclusão nos serviços de saúde, em especial na rede pública, nos níveis de atenção básica e especializada, implica oferecer espaços de escuta que compreendam e reconheçam a violência estrutural que as afeta. É preciso reinventar formas de cuidado que partam da escuta das populações migrantes, em diálogo com suas redes, saberes e modos de vida. Isso só é possível com a participação ativa dessas populações na construção das políticas públicas de saúde. Trata-se aqui de uma escolha ética e política: cuidar não apenas do corpo, mas da dignidade e da subjetividade de quem, ao ser deslocado, também foi profundamente desorganizado em seus pertencimentos.
É preciso construir políticas públicas que não universalizem o sofrimento, mas o reconheçam em sua singularidade e em sua inscrição histórica e social. Promover o cuidado em saúde de forma ética é reconhecer a pessoa migrante não como um corpo vulnerável a ser assistido, mas como um sujeito de direitos e de história.
3) Quais estratégias têm se mostrado mais eficazes para promover o bem-estar mental e social de refugiados em contextos urbanos e abrigos temporários?
A criação de espaços de escuta e cuidado que respeitem a singularidade do percurso migratório é fundamental. Para além de garantir condições básicas de subsistência em situações de abrigamento, é preciso criar condições para a reconstrução simbólica da vida após o deslocamento, reconhecendo que o sofrimento psíquico vivido nessas situações não pode ser tratado apenas como uma questão individual, mas como expressão de traumas coletivos e perdas estruturais
Experiências interessantes que vemos por diferentes municípios envolvem a presença de agentes comunitários de saúde migrantes, mediadores culturais e intérpretes comunitários, que atuam não só como tradutores linguísticos, mas também como pontes entre mundos simbólicos distintos. Esses atores ajudam a restabelecer laços, fortalecer a sensação de pertencimento e criar vínculos de confiança entre os profissionais e os usuários dos serviços. Além disso, a produção de materiais informativos em diferentes línguas, e culturalmente contextualizados, amplia o acesso a direitos e orientações básicas de cuidado.
Estratégias de acolhimento devem incluir a escuta das experiências, o acolhimento de demandas específicas dos diversos grupos que compõem as populações migrantes e a criação de políticas públicas com enfoque interseccional. É necessário ir além da assistência pontual e pensar em formas duradouras de integração e inclusão, compreendendo o espaço urbano e os abrigos como territórios de circulação e transição, e não como lugares de espera passiva. Promover saúde mental é também promover cidadania, mobilidade e possibilidades de reexistência. Nesse sentido, práticas comunitárias, grupos de escuta, oficinas culturais e parcerias intersetoriais podem ser estratégias potentes de cuidado, promovendo uma acolhida mais responsável e sensível às diferenças, a partir de uma perspectiva ético-política e democrática. Seja nos serviços básicos, especializados, nas casas de acolhida, passagem, bem como nos programas de reassentamento.
4) Que papel a ciência pode desempenhar na construção de políticas públicas mais humanas e inclusivas para a população refugiada?
O reconhecimento das desigualdades e violências muitas vezes invisibilizadas nos processos migratórios, no campo da saúde, implica também em construir dados, escutar narrativas e formular políticas a partir da realidade concreta das populações migrantes — suas histórias, línguas e territórios. A produção científica crítica deve estar a serviço da equidade, questionando as ausências e denunciando os silenciamentos que ainda marcam a construção das políticas públicas no Brasil.
Para isso, é necessário enfrentar uma lacuna estrutural: a escassez de dados sobre as populações migrantes no País, especialmente em relação à raça, etnia, gênero e o acesso à saúde. Não há uma produção robusta de dados nos sistemas de informações em saúde. Sem essas informações, a formulação de políticas públicas eficazes se torna limitada. A ciência pode, e deve, contribuir para dar visibilidade a esses sujeitos, produzindo evidências que sustentem a luta por direitos e inclusão.
Além de levantar dados, a ciência tem um papel político: contribuir para a construção de pontes entre as diretrizes legais — como a universalidade do SUS e os direitos garantidos pela Lei de Migração — e a realidade vivida nos territórios. Isso significa escutar os coletivos migrantes, colaborar com organizações da sociedade civil e fomentar a coprodução de saberes entre pesquisadores, profissionais de saúde e as próprias populações migrantes.
Debater o cuidado em saúde de migrantes deve ser algo permanente no campo migratório e da saúde pública, o que convoca ao cuidado transdisciplinar, intersetorial e que valorize epistemologias diversas. A ciência deve ser aliada na construção de políticas públicas que rompam com a lógica do assistencialismo e da tutela, e que reconheçam a pessoa migrante como sujeito de direitos e de memória.
Diante desse cenário, observamos a importância da mobilização da sociedade civil, de organizações e coletivos, em especial as redes de profissionais da saúde, que atuam com a temática migratória no País, para a construção e monitoramento das políticas públicas migratórias. Há a necessidade de uma política pública nacional de saúde que estabeleça pontes de alteridade, rompendo com visões preconceituosas e estigmatizadoras sobre as migrações, aproximando a palavra tecida na lei das vivências múltiplas nos territórios. A garantia de direitos é parte fundamental no cuidado em saúde e pensar em políticas mais eficientes de acolhimento da população migrante no Brasil passa por estabelecer um espaço democrático de escuta das demandas em relação à migração e à saúde.
5) Quais são os principais dilemas éticos enfrentados por profissionais de saúde mental no que se refere ao atendimento de vítimas de conflitos armados, populações refugiadas e outras situações que possam envolver questões humanitárias? Como podem atuar para proteger a dignidade humana em contextos onde os direitos fundamentais são violados em larga escala?
Da clínica às políticas públicas, a prática da(o) psicóloga(o) está em um fazer sempre entre territórios, a clínica que se implica ética e politicamente e a participação no processo de construção de uma política pública comprometida com o território. Os profissionais de saúde mental que atuam com populações refugiadas e vítimas de conflitos são convocados a uma escuta sensível às violências vividas e às marcas deixadas por essas experiências. Trata-se de acolher o sofrimento psíquico individual, mas também de reconhecer que ele se inscreve em contextos de violação dos direitos humanos, desamparos institucionais e apagamentos simbólicos.
A postura ético-política de realocar a dimensão social e política do sofrimento, nesse contexto, é um movimento fundamental, além de promover uma prática que não reduza o sujeito à condição de vítima ou à sua vulnerabilidade. Resguardar a dignidade humana, nesse contexto, é também apostar na potência de reconstrução e na escuta da singularidade. Uma atuação que precisa estar comprometida com a restituição de narrativas, com a escuta da dor e da resistência, com o reconhecimento dos efeitos do trauma. A clínica que se constrói nesse campo precisa assumir uma implicação com o território e com a denúncia das condições de exclusão que muitas vezes se repetem nas instituições de acolhimento. Isso exige da(o) profissional uma escuta crítica das instituições em que atua, além da busca por articulações intersetoriais e pelo trabalho em rede.
A atuação em contextos de violação exige uma escuta muitas vezes em direção a uma clínica ampliada, que se inscreve também nas políticas públicas. Isso significa atuar na construção de práticas que reconheçam o outro como alguém que carrega uma história, uma cultura e uma subjetividade, e que tem direito ao cuidado, à palavra e ao reconhecimento.
#DescreviParaVocê: cards coloridos contendo uma imagem de pessoas em contexto de refúgio e uma fotografia da pessoa entrevistada com breve apresentação, uma chamada textual para leitura da matéria completa e a marca gráfica do CRP 01/DF.