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SÉRIE PSICOLOGIA E MIGRAÇÃO: ENTREVISTA COM O PSICÓLOGO ARTUR MAMED CÂNDIDO

SÉRIE PSICOLOGIA E MIGRAÇÃO: ENTREVISTA COM O PSICÓLOGO ARTUR MAMED CÂNDIDO


Confira

No dia 20 de junho, é celebrado o Dia Mundial das Pessoas Refugiadas, uma data instituída pela Organização das Nações Unidas (ONU) para conscientizar sobre a situação de milhões de pessoas que são forçadas a deixar seus países de origem em razão de conflitos, perseguições ou crises humanitárias.

No campo da Psicologia, o trabalho com pessoas refugiadas demanda um olhar sensível para os impactos psíquicos do deslocamento forçado, da perda de vínculos e da reconstrução da identidade em contextos de acolhimento frequentemente marcados por xenofobia, racismo e outras formas de opressão. Além de oferecer escuta qualificada, a(o) profissional de Psicologia é chamada(o) a atuar pela autonomia dos sujeitos, reconhecendo suas histórias, desafios, saberes e potencialidades.

Nesta série de entrevistas, convidamos profissionais de diferentes áreas que atuam junto a pessoas refugiadas para compartilhar experiências e reflexões sobre o tema. Hoje, publicamos a entrevista concedida pelo psicólogo Artur Mamed Cândido (CRP 01/11869). Mestre em Psicologia Clínica e Cultura pela Universidade de Brasília (UnB) e doutor em Bioética pela Cátedra UNESCO de Bioética da mesma instituição., Artur Mamed tem trajetória marcada por atuação em políticas públicas e saúde mental, experiência na Rede de Atenção Psicossocial e em gestão educacional inclusiva. Desenvolve pesquisas sobre processos de subjetivação contemporâneos, com ênfase nos efeitos éticos e políticos da migração e do luto na constituição dos sujeitos. Atua também como docente e consultor, articulando clínica, crítica social e direitos humanos.

Confira:

1) Quais são os principais dilemas éticos enfrentados por profissionais de saúde mental no que se refere ao atendimento de vítimas de conflitos armados, populações refugiadas e outras situações que possam envolver questões humanitárias?

A atuação de profissionais de saúde mental com pessoas refugiadas e populações em deslocamento forçado é, desde o início, marcada por profundos dilemas éticos — especialmente, pela tensão artificial criada entre a cobrança de uma suposta “neutralidade” da Psicologia e o seu compromisso ético com os direitos humanos. É difícil imaginar outro campo da Psicologia tão atravessado por dimensões políticas e sociais quanto o da Psicologia das migrações. 

Mas é claro que fazer uma clínica socialmente situada e politicamente consciente é totalmente diferente de usar o espaço clínico como meio para assediar nossos pacientes a aderir perspectivas políticas e religiosas, como costumam fazer alguns setores reacionários dentro da Psicologia com assédio religioso, político e moral. Eu posso perfeitamente ter um paciente que acredita em ideologias políticas totalitárias e fascistas e isso não vir à tona como o objeto central do fazer clínico. Não é preciso haver concordância política para o estabelecimento de vínculo terapêutico ou o estabelecimento de objetivos clínicos. A clínica não deve se reduzir a um espaço de conversão religiosa e normatividade moral.

A questão é que, no contexto desse fazer, o modelo clínico tradicional, com foco individualizante, frequentemente se mostra insuficiente para dar conta das especificidades das demandas que invariavelmente emergem. A culpa é de um modelo que tenta esterilizar a clínica de suas dimensões sociopolíticas, neutralizar o seu teor sociopolítico. Assim, na clínica com pessoas em situação de migração, refúgio e apátridas, categorias centrais do saber psicológico passam a ser relidas a partir de suas determinações sociais e políticas. 

Conceitos como identidade, pertencimento, estigmatização, invisibilidade social e anomia tornam-se essenciais para compreender os modos de sofrimento que chegam até nós. Mesmo categorias clássicas, como trauma, transtorno, depressão ou estresse, precisam ser analisadas à luz das condições sociais, materiais concretos que impactam direta e objetivamente a vida dessas pessoas. 

Quando entendemos as histórias, entendemos o porquê. A pessoa com Transtorno de Estresse Pós Traumático ou de Ansiedade Generalizada passa a ser a criança que cresceu em uma rua incessantemente bombardeada do Líbano. Ela cresceu vendo prédios desabando, alvejados por bateria antiaérea. O Transtorno Obsessivo Compulsivo, passa a ser uma defesa psicológica ao trauma ininterrupto da segregação, da fome, violência e guerra. Ter sua vila invadida e dizimada, seu corpo violado, pode ser o fator precipitador de uma psicose. 

Atender sujeitos que vivenciaram guerras, perseguições políticas ou genocídios exige sensibilidade às marcas psíquicas da violência estrutural — tanto no país de origem quanto no país de acolhida. É comum que uma pessoa fuja de um sistema repressivo e violento apenas para se deparar, no país receptor, com um contexto igualmente hostil, marcado por racismo, xenofobia e invisibilidade social. Nesse cenário, é fundamental estar atento aos efeitos emocionais da perda de vínculos sociais e culturais, da anomia e do desenraizamento.

Um dos mais frequentes dilemas éticos — que também pode ser considerado um “equívoco técnico” — é o risco de “psicologizar” o sofrimento. Psicologizar é reduzir o sofrimento complexo a categorias intrapsíquicas individuais, desconsiderando suas causas complexas e estruturais. A escuta clínica, nesses casos, é quase sempre, também, uma escuta coletiva, por isso é sempre uma escuta social e politicamente situada.

Outro desafio importante é garantir o acesso, a escuta qualificada e a continuidade do cuidado em contextos marcados por precariedade, instabilidade e barreiras linguísticas e culturais. Isso exige uma capacidade de reinventar o setting terapêutico, que pode se transformar em grupos de trabalho e ajuda mútua. Inserir elementos de resgate de identidade. 

Nesses cenários, a ética profissional exige não apenas competência técnica, mas também um posicionamento político comprometido com os direitos humanos e com a reparação simbólica e subjetiva desses sujeitos. É preciso pensar no plano prático e material da vida das pessoas que acompanhamos. Como esses sujeitos vão morar, comer, trabalhar etc. Por isso, é sempre um trabalho em rede e multidisciplinar. 

Por fim, é preciso destacar que essa atuação demanda uma capacidade constante de deslocamento cultural. Lidar com o sofrimento de quem vem de outros mundos exige acolher formas distintas de expressar dor, luto, saudade e resistência. A maneira como um Yanomami vive seu luto, a saudade que um afegão sente de sua terra, a identidade em trânsito de um jovem venezuelano, de uma criança paquistanesa, as estratégias de reafirmação da identidade de um palestino ou a forma como um sudanês chora e mesmo verbaliza sua dor — tudo isso exige de nós escuta sensível, humildade cultural e disposição para rever nossos próprios referênciais.

2) Até que ponto o silêncio ou a neutralidade diante de injustiças massivas pode ser considerado uma violação dos princípios éticos fundamentais, como a justiça e a defesa da dignidade humana?

O silêncio diante de injustiças massivas não é neutro — na verdade, ele é cúmplice. O pacto ético-político da Psicologia brasileira é fundamentado em princípios como a promoção da dignidade, a não discriminação e a defesa dos direitos humanos, exigindo, por isso, uma postura ativa frente a todas as formas opressão.

Em contextos de violência sistemática — como guerras, genocídios ou regimes de apartheid — a neutralidade torna-se uma forma de legitimar o status quo em benefício dos regimes de opressão. Nesse sentido, o silêncio ético pode ser lido como omissão, ou mesmo como uma violação dos princípios que norteiam o exercício da Psicologia previstos no nosso Código de Ética. Psicólogos podem perder o CRP por consentir e trabalhar em instituições que violam os direitos humanos. Simplesmente por saberem e não fazerem nada. 

Comprometer-se com a justiça e a dignidade humana significa reconhecer que a escuta clínica não está dissociada das condições históricas e políticas que produzem o sofrimento. O que tenho observado é que, aqueles que clamam por neutralidade quando os psicólogos se posicionam contra o genocídio palestino em curso, por exemplo, geralmente não são neutros, muito pelo contrário. Uma escuta mais atenta irá mostrar que o clamor por neutralidade vem, na verdade, de uma tentativa de neutralizar o discurso que aponta para a responsabilidade ética da categoria. 

Até onde eu entendo, a categoria tem um compromisso político fundamental bastante definido. Esse compromisso é com a promoção dos direitos humanos e com a denúncia à toda e qualquer forma de opressão. Sim! Nossa categoria tem uma posição política clara: a defesa intransigente dos direitos humanos. Essa é a nossa posição política básica e eu suspeito muito de profissionais que usam o argumento da neutralidade para silenciar a voz desse compromisso. 

3) Como os conhecimentos psicológicos podem orientar políticas públicas e práticas profissionais em situações onde o sofrimento é causado por estruturas de poder e violência sistemática?

Entendo o papel do psicólogo como o papel de um intelectual socialmente engajado. A Psicologia oferece instrumentos fundamentais para compreender o impacto psíquico das violências sistêmicas e estruturais, como o racismo, o colonialismo, a necropolítica, o capacitismo e as formas de normatividade de gênero e sexuais. A partir desse conhecimento, somos totalmente aptos a propor políticas públicas que ultrapassem a assistência imediata, voltadas ao fortalecimento de redes de apoio, à promoção da cidadania e ao bem-estar coletivo. Nós temos um grande potencial de agência coletiva e cobrimos campos que nenhum outro profissional domina, como o campo da subjetividade e da saúde mental. 

A Psicologia social crítica, por exemplo, nos ensina que o sofrimento não é apenas individual, mas frequentemente expressão de dinâmicas históricas e estruturais. Isso implica que o fazer psicológico não pode se limitar ao nível do sintoma, mas deve estar articulado às lutas sociais e às políticas que enfrentam as raízes do sofrimento humano.

No campo da Psicologia das migrações, essa perspectiva se mostra particularmente necessária. Por exemplo: ao atender refugiados venezuelanos vivendo em abrigos improvisados nas periferias brasileiras, muitos profissionais têm observado quadros de depressão, ansiedade e transtorno de estresse pós-traumático. Mas, ao invés de psicologizar esses sintomas isoladamente, uma abordagem crítica busca compreender como eles se relacionam com o racismo estrutural, com a xenofobia cotidiana, com a invisibilidade social, com a precariedade habitacional e com a ausência de políticas de acolhimento efetivo a populações refugiadas.

Nesse sentido, o papel do psicólogo ultrapassa o aquele papel clássico do consultório: envolve articulação com movimentos sociais, produção de dados que embasam políticas públicas, ações de educação em direitos e construção de espaços de escuta coletiva que favoreçam o sentimento de pertencimento e a reconstrução de vínculos. É nesse lugar que a Psicologia se mostra ética, crítica e socialmente comprometida.

4) De que forma a Psicologia, enquanto profissão, pode atuar para proteger a dignidade humana em contextos onde os direitos fundamentais são violados em larga escala?

A Psicologia, enquanto ciência e profissão, tem o dever ético de se posicionar em defesa da vida, da liberdade e da dignidade humana. Esse compromisso pode se concretizar por meio da atuação direta com populações vulnerabilizadas, da produção de conhecimento que denuncie as estruturas de violência e da participação ativa nos debates e denúncias públicas.

Além disso, cabe à Psicologia fortalecer os processos de reestruturação e resistência subjetiva dos sujeitos, criando espaços de escuta, acolhimento, compartilhamento e reconhecimento de suas narrativas. Isso resgata a dignidade de quem foi repetidamente desumanizado. Em contextos de violações em larga escala, é fundamental que a atuação psicológica não se limite ao cuidado individualizado, mas se envolva em ações coletivas, no fortalecimento de redes comunitárias e em políticas de reparação histórica e social.

5) Que limites e possibilidades existem para o posicionamento político de profissionais da saúde em conflitos como o da Palestina, do ponto de vista da ética profissional?

A ética profissional da Psicologia não impede o posicionamento político — ao contrário, ela o exige quando estão em jogo a violação de direitos humanos, o genocídio e a desumanização de povos inteiros. O que a profissão impede é o uso do lugar terapêutico como forma de doutrinação. É perfeitamente possível não usar o espaço terapêutico dessa forma e ainda assim, ter e assumir publicamente suas convicções.

O conflito na Palestina é um exemplo emblemático de como a Psicologia não pode ser neutra frente à barbárie. De que silenciar é ser conivente. Se alguém ainda tem dúvida de que o que acontece lá é um genocídio, precisa rever suas fontes. Detesto informar: você vive numa bolha de desinformação planejada. O limite ético está na promoção de discursos de ódio ou no uso instrumental da Psicologia para fins ideológicos excludentes. Inclusive, a Psicologia tem uma ideologia assumida de inclusão e respeito absoluto pela diversidade humana. É um posicionamento político claro, resultante de uma série de consensos historicamente estabelecidos e compilados.

A boa notícia é que parte importante da categoria já percebeu a necessidade de atuar como voz crítica, solidária e comprometida com a justiça, contribuindo para desnaturalizar a violência e fortalecer a luta por reconhecimento e reparação. Não faz sentido ainda haver insistência nesse ponto. 

#DescreviParaVocê: cards coloridos contendo uma imagem de pessoas em contexto de refúgio e uma fotografia da pessoa entrevistada com breve apresentação, uma chamada textual para leitura da matéria completa e a marca gráfica do CRP 01/DF.



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