No dia 20 de junho, é celebrado o Dia Mundial das Pessoas Refugiadas, uma data instituída pela Organização das Nações Unidas (ONU) para conscientizar sobre a situação de milhões de pessoas que são forçadas a deixar seus países de origem em razão de conflitos, perseguições ou crises humanitárias.
No campo da Psicologia, o trabalho com pessoas refugiadas demanda um olhar sensível para os impactos psíquicos do deslocamento forçado, da perda de vínculos e da reconstrução da identidade em contextos de acolhimento frequentemente marcados por xenofobia, racismo e outras formas de opressão. Além de oferecer escuta qualificada, a(o) profissional de Psicologia é chamada(o) a atuar pela autonomia dos sujeitos, reconhecendo suas histórias, desafios, saberes e potencialidades.
Nesta série de entrevistas, convidamos profissionais de diferentes áreas que atuam junto a pessoas refugiadas para compartilhar experiências e reflexões sobre o tema. Hoje, publicamos a entrevista concedida pelo psicólogo Henrique Galhano (CRP 04/46512). Com especialização em Direitos Humanos e Cidadania no Contexto das Políticas Públicas e mestre em Psicologia pela PUC Minas (bolsista Capes/CNPq), Henrique Galhano atualmente é professor coordenador da especialização lato sensu em Psicologia e Migração na PUC Minas e doutorando bolsista FAPEMIG no PPGPSI PUC Minas. É também membro fundador do Coletivo Psimigra e conselheiro no XVII Plenário do Conselho Regional de Psicologia de Minas Gerais (CRP 04/MG).
Confira:
1) Quais você diria que são os principais impactos psicológicos enfrentados por pessoas refugiadas ao longo do processo de deslocamento e reassentamento?
A gente pode pensar, a partir do processo de desterritorialização das pessoas, que muitas vezes elas estão em situação de refúgio e acabam saindo do seu país de origem, sem condições até de se preparar para esse processo migratório, que é um processo diferente de quem faz isso de forma voluntária. Então, elas estão nesse processo de forma forçada, nesse deslocamento involuntário ou forçado, acabam por vezes não tendo uma condição mínima de se organizar para se preparar para a migração. E aí, quais são os impactos disso? É sempre um recomeço, você pensar sempre na questão de recomeçar uma nova trajetória de vida.
Então, você já tem uma rede de apoio já constituída, você tem uma casa, você tem ali uma comunidade à qual você pertence, e aí você se vê, de certa forma, obrigado a sair desse espaço, de não mais coabitar essa comunidade, essa casa, por conta de ameaças que afligem a vida da pessoa. Então, primeiro tem esse impacto subjetivo de você ter que migrar de maneira forçada porque você está sofrendo ameaça de morte ou ameaça aos seus direitos. E o outro impacto é esse processo de recomeçar.
Eu acho que esse processo de recomeçar é também doloroso de pensar, que tudo que você construiu durante o seu projeto de vida, o seu ciclo de vida, acaba sendo interrompido. Então, a gente pode pensar que um impacto subjetivo é esse ciclo, esse projeto de vida interrompido que você tem para poder mudar de lugar, pensar desse lugar. Você sai de uma desterritorialização, você desterritorializa o seu corpo para outro território. E esse processo também é o movimento duplo de um processo de desterritorialização, de como você também se adaptar a esse novo local, que você acaba indo por conta desse deslocamento forçado.
2) Seguindo esse raciocínio, na sua avaliação, como os serviços de saúde e as políticas públicas de maneira geral podem se adaptar para atender essas necessidades específicas das pessoas refugiadas, considerando, além desses elementos que você trouxe, as barreiras culturais e linguísticas?
As políticas públicas são o lugar onde se faz, onde se realiza esse acolhimento dessas pessoas que estão em situação de refúgio. Muitas vezes, as pessoas que chegam no Brasil, na condição de pessoas refugiadas, acessam as políticas públicas como forma também de ter acesso, o mínimo de garantia de direitos. E, aí, os profissionais das políticas públicas têm que estar preparados para poder fazer essa atuação.
“Em que sentido?” No sentido de entender a trajetória de vida desse sujeito imigrante, entender o contexto atual que essa pessoa está vivendo atualmente. E, aí, quando a gente vai pensar nesse acesso às políticas públicas, a gente pensa muito na questão das barreiras de acesso que essa população tem para poder acessar esses serviços. A gente pode trazer a barreira linguística como uma barreira de acesso dessa população às políticas públicas.
O CRP 04/MG fez um guia voltado para profissionais da Psicologia [disponível em: https://acervodigital.crp04.org.br/publicacoes/guia-migracao-refugio-trafico-de-pessoas-e-subjetividades-2022/], mas é um guia que pode ser orientativo também para outros profissionais que atuam nas políticas públicas, para poder também pensar nessa formação dos profissionais que atuam nas políticas públicas, e para poder pensar nesse atendimento à população imigrante e refugiada.
É necessário que os gestores das políticas também pensem como trabalhar a formação desses profissionais das políticas públicas para o atendimento das pessoas imigrantes e refugiadas. Nós sabemos que a Psicologia é o maior fornecedor de profissionais para as políticas públicas, e elas são os maiores empregadores da Psicologia.
E eu te falo de dois movimentos que podem ser interessantes: quando eu falo dos gestores, de pensar na construção de instrumentais, de novas técnicas voltadas para a orientação profissional para o atendimento. Lembrando que a gente está sob a égide de uma Constituição Federal, que todas nós, todas as pessoas que estão no Brasil, têm direito ao acesso às políticas públicas. Então, esse acesso não deve ser negado. Esse é o primeiro princípio. E muitos profissionais devem estar atentos, atentas.
E outro movimento, quando eu falo da Psicologia, é das funções do Sistema Conselhos de fomentar orientações para a categoria, para que ela possa estar preparada para o atendimento às pessoas imigrantes e refugiadas. Hoje, nós temos, entre as pessoas imigrantes e refugiadas do Brasil, cerca de 2 milhões e 400 mil pessoas que estão aí pelo Brasil todo.
Então, a gente tem uma gama de pessoas que, de certa forma, vão carecer de um atendimento com o profissional da Psicologia, seja na clínica, seja também nas políticas públicas, no atendimento às políticas públicas. Então, é importante pensar como os municípios, a gestão municipal, a gestão estadual vão formar esses profissionais dos atendimentos às políticas, porque nós também não temos uma política pública específica voltada para a população imigrante e refugiada.
A gente tem um avanço de uma lei de migração, que foi promulgada em 2017, porém, apesar de ser uma lei que pensa em uma diretriz voltada para a questão dos direitos humanos, substituindo a lei do Estatuto do Estrangeiro, que é uma lei datada da Ditadura Militar, é importante a gente pensar também que a gente não tem uma política pública específica voltada para a população imigrante e refugiada.
Então, cabe aos gestores das políticas pensarem também formas para poder facilitar esse acesso ou de promover esse acesso das pessoas imigrantes e refugiadas nas políticas públicas, que é a porta de acolhimento dessas pessoas de fato aqui no Brasil.
3) Aprofundando no tema acolhimento, você pode citar estratégias que têm se mostrado mais eficazes nesse sentido de promoção de bem-estar mental e social de pessoas refugiadas nesses contextos urbanos e de abrigos temporários?
O costume é fazer uma provocação de que a gente só consegue promover bem-estar quando a gente promove esse processo de interculturalidade. É pensar que a pessoa imigrante e refugiada é detentora também de um saber, e que a gente pode fazer essa troca. E aí a gente tem uma perspectiva do quanto profissionais da Psicologia são detentores de saber.
E essa detenção de saber, às vezes, ela acaba dificultando uma interface, um diálogo intercultural com as pessoas imigrantes e refugiadas que estão abrigadas, ou no atendimento às pessoas abrigadas, porque nós pressupomos que sabemos tudo, porque nós somos detentores de um saber da Psicologia. Porém, tem outros saberes que devem ser considerados neste lugar de troca. E aí, quando eu falo de uma troca intercultural, é de pensar que o outro também tem muito mais para nos oferecer do que a gente tem para oferecer para o outro.
E aí quando a gente promove essa escuta atenta ao outro, este olhar atento ao outro, o outro também se sente valorizado em fortalecer esse vínculo. Então, acredito que, em resumo, uma forma de promover práticas que sejam construtivas no atendimento à pessoa imigrante e refugiada seria, em primeiro momento, o profissional pensar como nós podemos ter uma escuta atenta e uma escuta que seja horizontal. E acho que isso se faz muito importante para poder pensar nas relações.
Inclusive, quando a gente vai pensar também em relações com pessoas imigrantes e refugiadas, que a gente já pense nessas relações de poder que acontecem nesse encontro por conta da pessoa não falar outra língua ou a pessoa estar ali fora do seu país de origem. Então, repensar essas relações de poder que permeiam esse diálogo e promover, de fato, uma escuta atenta a essas pessoas.
Diria que isso seria uma premissa, não só das pessoas imigrantes e refugiadas, mas também das pessoas que se encontram em situações de vulnerabilidade social que, de certa forma, nós como profissionais da Psicologia que atuam nesses espaços, seja no atendimento institucional, seja nas políticas públicas, a gente está ali para poder promover, em primeiro momento, uma emancipação daquele sujeito, essa emancipação do sujeito a partir da garantia e proteção social, garantia de direitos.
Então, acho que é importante se despir de todos os nossos estigmas, de todas as nossas estereotipificações para poder pensar, de fato, o fortalecimento de vínculo na promoção de uma saúde mental.
4) Você acredita que há espaço na saúde coletiva nacional e internacional para um posicionamento mais firme frente a crises humanitárias, como a Palestina, por exemplo? O que ainda falta?
Sim, eu acho que a gente consegue perceber, a partir da questão da Palestina, redes de solidariedade que vão se formando também para o acolhimento dessas pessoas que estão em extremo sofrimento. Estão em situação de guerra. Na verdade, não estão em situação de guerra, estão em situação de extermínio do seu próprio povo. Então, as redes de solidariedade são cada vez mais importantes para poder pensar nesse contexto global de genocídio de povos.
E o que sempre acontece, o que vem acontecendo na Palestina hoje em dia, é mais um genocídio, o extermínio de um povo originário daquela região do Oriente Médio. Então, nós temos que pensar como as redes de solidariedade globais podem contribuir.
Pensando em um contexto geopolítico global, uma vez eu escutei uma provocação e fiquei refletindo muito sobre ela: por que a gente não tem o BRICS da saúde mental para poder pensar na saúde mental a partir do Sul Global? Então, a partir disso, se temos uma rede em que se pensa economicamente, por que não pensar uma rede em que se pensa a saúde coletiva, que se pensa a promoção da saúde como um todo a partir do nosso saber do Sul Global? Porque a gente já exporta isso, de certa forma, em outras áreas.
Porém, a gente tem condições, a partir das redes de solidariedade, inclusive de emergências e desastres que acontecem no Brasil, a gente consegue criar redes de solidariedade brasileiras no Brasil e na América Latina. E nós temos redes de solidariedade muito potentes para que a gente consiga, a partir de uma leitura, pensar na parte da Psicologia comunitária coletiva, da saúde coletiva. Então, talvez a gente teria que pensar melhor em como construir e promover essas redes de saúde coletiva para o atendimento das pessoas migrantes e refugiadas a partir de uma perspectiva do Sul Global.
5) É possível perceber que, nesse campo de atuação, toca-se em temas muito sensíveis. Quais seriam os principais dilemas éticos que são enfrentados por profissionais de saúde mental no que se refere ao atendimento a pessoas refugiadas, vítimas de conflitos armados e outras situações que envolvem ou possam envolver questões humanitárias?
Primeiro que o profissional deve estar preparado para poder fazer esse tipo de acolhimento e uma escuta que seja eticamente sensível por conta da especificidade de cada povo e de cada situação que é envolvida. E aí, a gente tem que pensar quais são as premissas éticas de um profissional da Psicologia que vai atender uma pessoa que sofre uma violência, uma violência de Estado. Porque uma pessoa que está em situação de refúgio é uma pessoa que sofreu uma violência de Estado para estar naquela condição.
Eu acho que a gente pode pensar alguns apontamentos, algumas pistas para poder pensar nesse espaço. Por exemplo, primeiro uma formação profissional que seja adequada. Depois, pensar em uma despatologização desses lugares, das pessoas que estão nessa condição.
Porque, enquanto profissionais da Psicologia, a gente possui uma patologização das experiências humanas em vez de escutá-las. Desestigmatizar este lugar também da escuta. Por que a pessoa está em condição de refúgio? Por que acontecem as condições que provocam essas emergências, desastres, essas violências?
E, enquanto profissional da Psicologia, a gente tem que estar atento ao que acontece nos fenômenos sociais globais para que a gente não replique, na nossa escuta e no nosso atendimento, as relações de poderes, e também as relações de subalternização do outro. Porque eu acho que, nesse lugar, a implicação lógica que nós profissionais da Psicologia deveríamos ter é que, se a gente coloca o outro em um lugar subalternizado, [a gente] esquece, de certa forma, de escutar de fato porque aquela pessoa está em sofrimento. E por que acontecem os conflitos? Por que aquela pessoa está ali? Então, a gente costuma brincar que o profissional da Psicologia que só sabe de Psicologia, nem de Psicologia sabe.
Ele tem que estar atento às questões globais dos motivos, dos fenômenos sociais que acontecem para estar atento, para ter uma escuta que seja implicada. Aí eu chamo de uma escuta implicada em vez de uma escuta ética. Porque, se você tem uma escuta implicada, você consegue fazer uma escuta ética que seja eticamente sensível daquela pessoa que está em sofrimento por alguma razão.
6) Para finalizarmos esta entrevista, você consegue enxergar potencialidades da Psicologia no sentido de maior conscientização sobre esse tema? O que a gente poderia pensar em termos de potencial para superar esses desafios que vêm sendo enfrentados pelos profissionais e pelas pessoas refugiadas?
Eu acho que, enquanto profissionais da Psicologia, nós temos que estar implicados politicamente também nas questões globais. Mas também precisamos pensar em como fomentar políticas efetivas para essas pessoas migrantes e refugiadas. Então, a gente tem percebido o movimento, inclusive, do Sistema Conselhos, de participarmos de conferências para poder discutir a política migratória brasileira. Então, a gente já sente um grande avanço.
Só de pensar que, em 2019, quando a gente tinha um espaço de 500 pessoas discutindo política migratória, a gente tinha cinco profissionais da Psicologia. Hoje, a gente conseguiu realizar uma conferência livre de profissionais da Psicologia para poder discutir política migratória. A gente consegue fazer intervenções da Psicologia.
Então, fazer Psicologia é fazer política. Não está desassociado. Uma potencialidade que, enquanto profissionais da Psicologia, podemos ter, é pensar nesses espaços de construção das políticas, de como nós podemos trabalhar para poder melhorar esses lugares.
Porque, de certa forma, o profissional da Psicologia trabalhará nessa política que vai ser criada, que vem sendo desenhada. E aí, pensar também nas conferências, nos espaços democráticos para poder levar essa temática também para a discussão. Por exemplo, enquanto profissionais da Psicologia, a gente está participando da construção do SUS, participa da construção do SUAS, participa das políticas de educação.
E esses são espaços férteis para a gente poder mostrar que há pessoas para as quais, muitas vezes, as políticas não estão olhando. Então, eu acho que, enquanto profissionais da Psicologia que atuam com a temática da migração e até quem não atua com a temática da migração, mas que conhece esse tema ou tem interesse, é importante ficar atento sobre como a gente pode levar esse tema para esses espaços nas construções das políticas.
Eu vou citar uma experiência de Belo Horizonte. Recentemente, nós fizemos uma conversa com os movimentos sociais, com os gestores das políticas públicas, com pesquisadores, com Institutos de Ensino Superior. Fizemos esse encontro, inclusive, na nossa sede, com o Conselho de Minas Gerais, para a gente poder discutir uma política, um projeto de lei de migração para a cidade de Belo Horizonte. E aí, a partir dessa discussão, a gente levou e apresentou esse projeto de lei que está tramitando.
E aí não é só tramitar o projeto de lei, mas também estar ali para poder fazer com que esse projeto de lei avance também. E aí, eu cito esse exemplo, que é como a Psicologia atua também. Atua também na construção de políticas, de projetos de lei que beneficiam a população, a população de um modo geral.
E populações específicas que, às vezes, ainda são negligenciadas pelo poder público. Então, é o nosso papel. Então, a gente tem que perceber que, pensando nesses avanços, nós temos dentro das políticas, o fomento do Conselho de Psicologia do Distrito Federal nessa parceria com o Conselho Regional de Psicologia de Minas Gerais e com outros conselhos regionais, dá para a gente pensar nesse fomento da discussão da Psicologia e migração, pensar como a gente pode fomentar esse debate da categoria para a categoria, que tenha conhecimento maior sobre os fenômenos que acontecem em nível global, que impactam diretamente nosso cotidiano.
#DescreviParaVocê: cards coloridos contendo uma imagem de pessoas em contexto de refúgio e uma fotografia da pessoa entrevistada com breve apresentação, uma chamada textual para leitura da matéria completa e a marca gráfica do CRP 01/DF.