Bem-Vinda(o)!

O CRP 01/DF está de cara nova!

Mas se você quiser ainda é possível acessar o site antigo no menu acima


SÉRIE PSICOLOGIA E MIGRAÇÃO: ENTREVISTA COM A PSICÓLOGA AMANDA FALCOMER

SÉRIE PSICOLOGIA E MIGRAÇÃO: ENTREVISTA COM A PSICÓLOGA AMANDA FALCOMER


Confira

No dia 20 de junho, é celebrado o Dia Mundial das Pessoas Refugiadas, uma data instituída pela Organização das Nações Unidas (ONU) para conscientizar sobre a situação de milhões de pessoas que são forçadas a deixar seus países de origem em razão de conflitos, perseguições ou crises humanitárias.

No campo da Psicologia, o trabalho com pessoas refugiadas demanda um olhar sensível para os impactos psíquicos do deslocamento forçado, da perda de vínculos e da reconstrução da identidade em contextos de acolhimento frequentemente marcados por xenofobia, racismo e outras formas de opressão. Além de oferecer escuta qualificada, a(o) profissional de Psicologia é chamada(o) a atuar pela autonomia dos sujeitos, reconhecendo suas histórias, desafios, saberes e potencialidades.

Nesta série de entrevistas, convidamos profissionais de diferentes áreas que atuam junto a pessoas refugiadas para compartilhar experiências e reflexões sobre o tema. Hoje, publicamos a entrevista concedida pela psicóloga Amanda Figueiredo Falcomer Meneses (CRP 01/25646). Psicóloga pela Universidade de Brasília (UnB) e especialista em Saúde Mental pela Escola de Saúde Pública do Distrito Federal (ESPDF/FEPECS), Amanda Falcomer tem experiência de atuação profissional nas áreas de Psicologia Clínica, Psicologia do Trabalho e Atenção e Intervenção Psicossocial e é pesquisadora nos campos de Saúde Coletiva, Psicologia Social e Comunitária, Políticas Públicas, Psicologia do Trabalho, e Atenção e Intervenção Psicossocial.

Confira:

1) Em artigo publicado recentemente na revista Contribuciones a Las Ciencias Sociales [disponível aqui], a senhora e os demais autores abordam o aumento da demanda por saúde de  populações migrantes e refugiadas no Distrito Federal. Poderia compartilhar conosco quais foram os principais desafios que observaram na gestão do cuidado em saúde mental para essas populações na rede pública do DF?

No artigo trazemos a constatação de que essa percepção de aumento de demanda foi apontada inclusive em notas técnicas, uma da SES-DF [Secretaria de Saúde do Distrito Federal] e outra do Ministério da Saúde, ambas de publicação recente.

Iniciamos o trabalho de investigação dos principais desafios para gestão do cuidado em saúde mental para populações migrantes e refugiadas na rede pública do DF devido às dificuldades que encontrei e percebi durante minha atuação como psicóloga residente em serviços da Rede de Atenção Psicossocial (RAPS) do DF.

Eu vinha de uma experiência de pesquisa e extensão com mulheres migrantes hispanofalantes desenvolvida ainda na graduação na UnB, o Proyecto Relatos de Mujeres Migrantes, ao qual agradeço muito à psicóloga Damaris Chamorro Pablo pelo aprendizado imenso, e por isso já estava sensibilizada e próxima das discussões sobre saúde mental e migração.

Durante minha atuação na RAPS, me incomodei e indignei com o despreparo dos serviços e equipes para atuar no cuidado psicossocial de pessoas em situação de migração e refúgio. É um cenário muitas vezes marcado pela dificuldade expressiva de articulação em rede, desconhecimento e desinteresse pela rede, coletivos e normativas, ausência de fluxos e protocolos estabelecidos e supressão das discussões sobre processos de trabalho relacionados à temática, que escancara e mantém o despreparo técnico e indisposição da maioria dos trabalhadores e serviços de saúde para o acolhimento e cuidado.

Vi em mais de uma ocasião equipes e profissionais que se limitavam a centralizar o cuidado que estava sendo articulado em um ou poucos profissionais que tivessem disponibilidade afetiva ou algum domínio linguístico, e não havia esforço e reflexões enquanto equipe e serviço para pensar na ampliação e continuidade do cuidado oferecido. Também ocorre muito um embarreiramento cultural e linguístico por parte dos profissionais, que já assumem que será impossível prestar qualquer assistência e atendimento pelas diferenças culturais e de idiomas antes mesmo de tentar.

São questões que realmente devem ser pautadas, mas as orientações do próprio Ministério da Saúde e da literatura no tema recomendam que ocorra a articulação com os coletivos e comunidades locais para que se possibilite a presença de mediadores culturais nos atendimentos caso seja pertinente e desejado pela pessoa atendida. Na prática, muitas vezes os próprios pacientes/usuários apresentam soluções para driblar essas barreiras, que eles já estão utilizando para se comunicar no cotidiano. Com vínculo terapêutico muito se pode fazer e construir. Mas essa responsabilidade tem de ser dos profissionais de saúde e não dos pacientes, que devem se comprometer em ofertar o cuidado conforme as especificidades demandadas, e também dos gestores de políticas públicas, que têm de prever e ofertar qualificação profissional, estratégias e recursos para a realização do trabalho.

A realidade é que se há pouquíssima formação em saúde pautando a interculturalidade crítica, letramento racial e de gênero, e os profissionais de diversas categorias, incluindo psicólogas(os), acabam despreparados para atuar na complexidade e contradições da realidade brasileira, principalmente no campo da saúde mental, com profundas determinações sociais.

Majoritariamente a inacessibilidade é gerada por questões estruturais e comunicacionais dos serviços e profissionais de saúde, por falhas de gestão, planejamento e execução das políticas de saúde, e não por "barreiras" supostamente intransponíveis naturalmente existentes pela alteridade.

O trabalho publicado no periódico só foi possível graças à generosidade dos dois outros autores (Carlos Portela e professora Muna Odeh), que se dispuseram a me ajudar a trabalhar nessa pesquisa, pois quando propus a investigação ouvi de muitos profissionais de saúde que era uma temática "muito importante", mas que não poderiam me auxiliar porque não tinham conhecimento na temática e disposição, "tempo para aprender". 

2) Quais são os principais impactos, no que se refere à saúde mental, enfrentados por pessoas refugiadas ao longo do processo de deslocamento e reassentamento?

As experiências migratórias podem ser muito diversas entre si, pois são determinadas por fatores como: status legal; se foi uma migração planejada, voluntária, desejada, forçada; condições socioeconômicas; barreiras culturais e linguísticas e políticas de imigração e assistência dos países de acolhimento.

Todos esses fatores impactam a saúde mental profundamente, pois se somam a determinantes como gênero e etnia, ao chamado deslocamento subjetivo, às dificuldades de integração e acessibilidade (questões legais, reinserção no mercado de trabalho, etc), a violências no processo de deslocamento em si, à ruptura de vínculos familiares, impossibilidade de comunicação com o território de origem, e aos traumas intergeracionais, conformando um caráter traumático de cenários de ruptura e reconstrução de identidades e vivências cotidianas de ausência, não pertencimento, violências e exclusão.

Tenho de destacar ainda o fenômeno do xeno-racismo, como posto por Deivison Faustino e Leila de Oliveira em trabalho de 2021, que escancara a hospitalidade seletiva da sociedade brasileira a estrangeiros, e que demonstra que pessoas provenientes de países e nações da América Latina, África e Oriente Médio, recebem um tratamento diferenciado de migrantes europeus ou norte-americanos. Para pessoas refugiadas, todos esses fatores podem atuar conjuntamente, gerando grande sofrimento emocional, vivências de exclusão, violência e adoecimento que têm de ser acolhidas e enfrentadas pelo cuidado em saúde e pelas políticas públicas. 

3) Quais são os principais dilemas éticos enfrentados por profissionais de saúde mental no que se refere ao atendimento a pessoas refugiadas? E como os conhecimentos psicológicos podem orientar políticas públicas e práticas profissionais em situações onde o sofrimento é causado por estruturas de poder e violência sistemática?

Acredito que os dilemas éticos de profissionais de saúde mental no atendimento a pessoas refugiadas são os mesmos dos cenários de atendimento a qualquer situação de violência sistemática e opressão, pois se trata da conduta e da postura da profissional frente a vivências de exclusão e injustiça.

O código de ética das profissionais de Psicologia é assertivo nesse âmbito, ao vetar a prática e conivência com quaisquer atos que caracterizem negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade ou opressão; a indução de convicções políticas, filosóficas, morais, ideológicas, religiosas, de orientação sexual ou a qualquer tipo de preconceito quando do exercício de suas funções profissionais; e a utilização do conhecimento e práticas psicológicas como instrumentos de castigo, tortura ou qualquer forma de violência.

As contribuições de Martin-Baró e de autoras brasileiras do campo da Psicologia Social acerca do compromisso ético-político da Psicologia como campo de saber e atuação que podem e devem estruturar e ofertar uma escuta culturalmente sensível, e uma práxis socialmente orientada, são imprescindíveis.

Ao se abordar o sofrimento apresentado por pessoas refugiadas no campo da saúde mental como um sofrimento ético-político, conforme conceito de Bader Sawaia, o direcionamento torna-se muito nítido: uma prática psicológica compromissada com a promoção de protagonismo, dignidade e cidadania, que tenha como horizonte a autonomia e a conscientização para o enfrentamento das vivências de violência e exclusão que geram adoecimento.

Ao se compreender tal sofrimento como grande reflexo das injustiças sociais sistêmicas, entende-se a necessidade de combatê-lo estruturalmente e coletivamente por meio das políticas públicas de saúde, educação e seguridade social, que podem concretizar transformações sociais. 

4) Quais estratégias têm se mostrado mais eficazes para promover o bem-estar mental e social de pessoas refugiadas em contextos urbanos e abrigos temporários em nossa região?

A promoção de vinculação e pertencimento por meio de coletivos e comunidades se mostra muito benéfica nessas situações, pois trata-se de uma realidade em que geralmente se tem muitos vínculos rompidos e perdidos. Além disso, se é pelo coletivo que muitas vezes se adoece, também é pelo coletivo que se cura.

O pertencimento e o acolhimento ajudam a restituir e fortalecer questões identitárias, culturais e vínculos fundamentais, além de construir uma rede de apoio que auxilia com questões legais, burocráticas, trabalhistas e de comunicação. Também propicia a mobilização e a participação social, que são essenciais para a autonomia e o protagonismo na conquista de seguridade social e direitos fundamentais.

O cuidado em saúde pode e deve auxiliar nas questões que lhe são pertinentes, e inclusive deve promover o cuidado comunitário e se articular com os grupos e comunidades, pois a assistência em saúde é fundamental na abordagem das singularidades que o cuidado comunitário não esgota, através de assistência especializada culturalmente sensível na atenção psicossocial, por exemplo.

#DescreviParaVocê: cards coloridos contendo uma imagem de pessoas em contexto de refúgio e uma fotografia da pessoa entrevistada com breve apresentação, uma chamada textual para leitura da matéria completa e a marca gráfica do CRP 01/DF.



<< Ver Anterior Ver Próximo >>