
As notícias recentes sobre a intenção do Governo do Distrito Federal (GDF) de realizar novos cortes nas verbas para a saúde têm preocupado entidades representativas de profissionais da área. A necessidade de fortalecimento da Rede de Atenção Psicossocial (RAPS) tem despertado especial atenção da Psicologia, que busca atuar em diversas frentes contra o sucateamento dos equipamentos de saúde e em defesa da Reforma Psiquiátrica brasileira.
Em artigo elaborado para o Conselho Regional de Psicologia do Distrito Federal (CRP 01/DF), o psicólogo Filipe Willadino Braga (CRP 01/15020) aborda a série de desafios enfrentados nos últimos anos por profissionais e usuárias(os/es) de serviços de saúde na região, refletindo sobre caminhos possíveis e posicionamentos necessários.
Filipe é mestre em Psicologia Clínica e Cultura pela Universidade de Brasília (UnB). Desde 2010, trabalha como psicólogo do Centro de Atenção Psicossocial (CAPS) II do Paranoá. É coordenador pedagógico do Centro de Formação Espaço Devaneio e já atuou como professor e supervisor em instituições como o Supremo Tribunal Federal (STF), a Escola Superior de Ciências da Saúde (ESCS) e a UnB. É coordenador do grupo Maluco Voador, projeto vencedor do Prêmio Victor Valla de Educação Popular e Saúde e do Concurso de Boas Práticas em Atenção Psicossocial pela Secretaria de Saúde do Distrito Federal. Tem publicações acadêmicas perpassando temáticas como atenção básica, cultura popular, desinstitucionalização e saúde mental.
Confira:
O Distrito Federal apresenta uma Rede de Atenção Psicossocial (RAPS) insuficiente em relação às suas demandas territoriais, apesar de encontrarmos experiências que são referência nacional pelo esforço dos frequentadores, trabalhadores e gestores do Sistema Único de Saúde (SUS), os quais encontram soluções inovadoras mesmo com a ausência dos recursos necessários. Cabe questionarmos o papel dos psicólogos e do Sistema Conselhos no desafio do cuidado em saúde mental em liberdade, tendo a desinstitucionalização, a prevenção e promoção da saúde mental como metas centrais em nossa atuação.
É importante destacar que desinstitucionalizar em saúde mental não significa apenas desospitalizar, nem desassistir pessoas com sofrimento psíquico, portanto consistindo em estratégia que evita os processos de institucionalização em serviços de caráter asilar e manicomial, ofertando estratégias para que as pessoas possam circular em seus territórios demonstrando a capacidade de pessoas estigmatizadas como “loucas” serem agentes que auxiliam seus territórios a pensar a tolerância à diferença em nossa sociedade atual.
Nesse contexto, o Hospital São Vicente (HSVP) ainda mantém-se como um recurso utilizado em demasia para a atenção à crise do DF, em especial pela baixa cobertura de Centros de Atenção Psicossocial (CAPS) do tipo III (24h), mas também pela necessária integração entre a atenção primária e os serviços de urgência e emergência, para que as crises não sejam encaminhadas aos hospitais psiquiátricos.
Segundo a Lei da Reforma Psiquiátrica, promulgada em 2001, a internação deveria ser o último recurso a ser utilizado e esta deveria ocorrer fora de hospitais psiquiátricos, em hospitais gerais ou na lógica de acolhimento diuturno em CAPS III. Recentemente, ocorreram duas mortes no HSVP que estão sendo investigadas e trouxeram à tona a necessidade de avaliar seu papel na RAPS do DF e monitorar possíveis violações de direitos que podem estar ocorrendo neste serviço.
Outro ponto importante a ser analisado é a Resolução nº 487/2023, do Conselho Nacional de Justiça, a qual institui a Política Antimanicomial no Judiciário. Haroldo Caetano, promotor com experiência em projeto antimanicomial denominado PAILI, discute a dimensão infralegal da saúde mental ser permeada pela noção de periculosidade que tem como mecanismo jurídico a implementação de medidas de segurança. Ele aponta que, desde a constituição de 1988, já não faz mais sentido estabelecer medidas baseadas na criminologia positivista, essencialmente racista e eugenista, tendo a medida de segurança como recurso que estabelece regimes de asilamento em hospitais de custódia que podem superar o maior apenamento possível para crimes hediondos no Brasil. Portanto, esse autor nos apresenta que a Lei da Reforma Psiquiátrica já estabelecia que no judiciário não poderiam ser mantidas instituições segregatórias e de cunho manicomial, porém, na prática, os hospitais de custódias e alas de tratamento psiquiátrico mantiveram a lógica manicomial.
Haroldo Caetano lança mão do conceito de objeto transicional do psicanalista D.W. Winnicott, quando diz que vivemos uma fase de “infância criminológica”, ainda atrelada à lógica da periculosidade e a características inatas do criminoso, crença dogmática que justifica o isolamento de pessoas sem base científica e contradizendo a Lei nº 10.216. Esse autor aponta que a Resolução 487 pode ser entendida como um objeto transicional que permita o sistema judiciário brasileiro amadurecer, assim como Winnicott aponta em relação a um objeto que o bebê leva consigo para lidar com a separação de sua mãe, que pode ser ferramenta para sua autonomização e amadurecimento. O objeto transicional é algo que pode ser abandonado, na medida que não é mais necessário ao bebê, da mesma forma como Haroldo Caetano nos aponta que a Resolução 487 vem implementando espaços de discussão e implementação de políticas públicas que, progressivamente, vêm discutindo o fechamento de hospitais de custódia. Além disso, os Comitês Estaduais Interinstitucionais de Monitoramento da Política Antimanicomial (CEIMPA) estão desenhando fluxos que fomentem a quebra da lógica de medidas de segurança sobre a pessoa com quadro de saúde mental, para que seja pensado seu tratamento adequado fora da lógica punitivista e institucionalizante.
O Distrito Federal nunca dispôs de uma estrutura vinculada ao conceito de Hospital de Custódia e Tratamento Psiquiátrico (HCTP), de modo que, historicamente existe unidade localizada dentro da estrutura arquitetônica da Penitenciária Feminina do Distrito Federal (PFDF), a Ala de Tratamento Psiquiátrico (ATP) na qual ocorre o cumprimento das internações compulsórias no DF. Havia sido decretada a necessidade de fechamento da ATP em 28/08/2024, porém recentemente este prazo foi prorrogado para maio de 2026. Apesar disso, observamos que o relatório do Grupo de Trabalho Interinstitucional da Política Antimanicomial do Poder Judiciário (GTIPA) do DF já aponta um esforço de redução da lotação na Ala de Tratamento Psiquiátrico (ATP), a formulação de fluxos para desinstitucionalização e atendimento em meio aberto. Apesar disso, observamos que estes avanços ainda são incipientes em relação ao desafio de quebrar a lógica da periculosidade e instauração de medidas de segurança, já que ainda mantêm uma estrutura similar a um Hospital de Custódia e Tratamento Psiquiátrico. Portanto, observamos a necessidade da Psicologia compreender seu papel social na fiscalização, acompanhamento e apoio técnico à discussão sobre a lógica antimanicomial e sua superação no âmbito do judiciário.
No campo da desinstitucionalização da loucura, a Psicologia encontra-se como campo de transversalização da escuta, convivência e presença sensível com postura ética e compromisso social em relação à superação das práticas manicomiais e tendo sua prática baseada em uma clínica que aponta caminhos para uma atenção que se adapte aos territórios vividos pelas pessoas em sofrimento. Essa forma de cuidado pode ser pensada como uma clínica peripatética, conceito do psicólogo argentino Antonio Lancetti, que defende a necessidade que a clínica convide os frequentadores dos serviços de saúde mental a ficarem de pé e ocuparem seus territórios como agentes culturais. Lancetti nos mostra que a integração da saúde mental com a atenção básica e a atuação no território existencial e cultural dos sujeitos promovem a “turbinação” dos serviços de saúde mental como os Centros de Atenção Psicossocial, em oposição à burocratização pela tentativa de autossuficiência e fechamento em si mesmo desse serviço. Nesse contexto, percebemos a importância do psicólogo não se centrar apenas em sua atuação restrita aos conceitos de suas disciplinas uniprofissionais, mas no esforço de sua prática transformar também aspectos institucionais como o compromisso com o paradigma da desinstitucionalização.
Compreendo que o psicólogo nesse contexto deve atuar a partir da Psicologia da Libertação proposta por Martin-Baró, na crítica à colonização da Psicologia como ciência e buscando métodos que contemplem a vivência dos grupos oprimidos e visem a conscientização. Martin-Baró cita a necessidade de libertar a Psicologia para ela ser libertadora, demandando três tarefas urgentes: recuperação da memória histórica; desideologizar a experiência cotidiana; e potencializar as “virtudes” dos grupos populares. A partir dessa perspectiva, existem experiências que estão propondo fomentar uma cultura antimanicomial na cidade, para além da dimensão assistencial nos serviços de saúde mental. Aponto alguns grupos do DF como o Maluco Voador, a Companhia de Teatro Atravessa a Porta e o Bloco do Rivotril, estratégias que buscam integrar o lugar da Psicologia regida pelo compromisso social e a busca da libertação de situações de opressão, a partir de tecnologias leves e da lógica da produção de vida em detrimento à lógica institucionalização.
Para finalizar a discussão, gostaria de retomar o exemplo de Fernando Diniz, artista que fez parte da experiência de Nise da Silveira no museu das imagens do inconsciente. Fernando foi preso após tomar banho nu na praia de Copacabana, ficando seis meses detido, e posteriormente, passando para a institucionalização em hospital psiquiátrico onde lhe foram prescritos choques elétricos e coma insulínico. Apesar desse trajeto permeado por violações de direitos, Fernando pôde produzir cerca de 30 mil obras que podem ser conferidas no Museu de Imagens do Inconsciente, porém devemos pensar que situações como essa integram a relação entre o punitivismo do sistema judiciário brasileiro, o estigma da loucura e formas de tratamento que violam os direitos de pessoas em sofrimento. Esperamos que, com a ocupação da cidade e o fomento de uma cultura antimanicomial da cidade, possamos voar com a diferença apresentada pelas experiências denominadas loucura, atravessar as portas que antes ficavam trancadas no manicômio e poder falar em um bloco de carnaval o lema: “mais sedução, menos sedação”.
#DescriçãoDaImagem: card colorido com a fotografia do autor e chamada para leitura do artigo do psicólogo Filipe Willadino Braga. Aparece ainda um trecho do texto e a marca gráfica do CRP 01/DF.