O Dia Mundial da Saúde Mental, celebrado em 10 de outubro, convoca a Psicologia a reafirmar seu compromisso ético com a promoção da vida, a defesa da dignidade humana e a garantia de direitos de todas as pessoas.
Nos artigos publicados pelo Conselho Regional de Psicologia do Distrito Federal (CRP 01/DF), buscamos apresentar experiências que dão visibilidade às práticas desenvolvidas por profissionais, usuários e movimentos sociais em defesa da Lei nº 10.216/2001 - que redireciona o modelo assistencial em saúde mental - e do fortalecimento da Rede de Atenção Psicossocial (RAPS) no Distrito Federal. São narrativas que evidenciam a potência do cuidado em liberdade, da construção coletiva de espaços de acolhimento e do reconhecimento da diversidade como fundamento da atenção em saúde mental.
O artigo da psicóloga Manuela Alencar, uma das profissionais premiadas durante a I Mostra Nacional de Práticas Profissionais "A Psicologia na luta pelo cuidado em liberdade: ontem, hoje, sempre!", trata do significado de saúde mental para a Psicologia e reflete sobre o potencial da atuação de profissionais da área na defesa da dignidade humana.
Já no texto elaborado pelo professor Pedro Costa, da Universidade de Brasília (UnB), o psicólogo traz dados do que chama de “indústria da loucura” no Distrito Federal, com recursos públicos financiando equipamentos privados e manicomiais.
Ao reunir essas vozes, o Conselho busca contribuir para a reflexão crítica e para a valorização de práticas que rompem com estigmas e exclusões, afirmando a importância de políticas públicas comprometidas com a justiça social e a cidadania.
Confira:
"De qual Saúde Mental falamos?": a urgência de (re)afirmar o cuidado como ato ético-político, por Manuela Alencar*
Mais do que celebrar, o Dia Mundial da Saúde Mental exige posicionamento, reafirmando de qual lado da história se fala e se luta. Isso porque, se falamos de saúde sental antes da Reforma Psiquiátrica, falamos sobre sinônimo de loucura, de desvio e erro, daquilo que era rejeitado e que precisava ser excluído e apagado. Ou seja, tem-se um referencial, inclusive embasado pelos saberes psi, que enxergava as pessoas a partir do seu ajuste ou desajuste à lógica vigente, instaurando um dispositivo normatizante e reducionista que corroborava para a determinação social de formas de tratamento de cunho controlador, adaptativo e violento.
Já no contexto pós-reformista, espera-se um novo olhar para a saúde mental, ocupando um lugar de compreensão, respeito e dignidade. Porém, continuamos lutando contra o mesmo inimigo, com a mesma perspectiva, mas sob novas roupagens.
A saúde mental, em grande medida, torna-se sinônimo de diagnóstico psicopatológico, sendo a existência de muitos sido reduzida a quadros sintomáticos e aspectos nosológicos psiquiátricos, e tendo referências de que certos diagnósticos são aceitos e outros rejeitados, revelando que há forças para além da clínica que determinam a lógica da (a)normalidade: os atravessamentos de classe, raça, gênero que seguem ditando quais vidas são dignas de respeito e cuidado e quais permanecem no seio da invisibilização.
Não é à toa que observamos a ascensão e consolidação das comunidades terapêuticas como recurso de tratamento para uso prejudicial de álcool e outras substâncias, legitimadas e financiadas pelo discurso político-social, apesar de todas as inúmeras violações de direitos que atravessam sua dinâmica assistencial.
Tais instituições se configuram como um retrocesso à lógica manicomial, reproduzindo práticas de isolamento, disciplinamento e exclusão que a Reforma Psiquiátrica buscou superar, reeditando, assim, o lugar que a saúde mental ocupa no imaginário social.
Paralelamente, vivemos outra faceta da saúde mental, a de uma epidemia de protocolos normativos que, sob o pretexto de promover saúde mental em uma lógica de positividade extrema, atuam como prescrições universais e descontextualizadas, reduzindo o sofrimento humano a fórmulas simplistas que esvaziam a complexidade da experiência subjetiva e desconsideram os determinantes sociais que permeiam o sofrimento psíquico.
Por isso que, hoje e sempre, é preciso reafirmar que a saúde mental não pertence a um saber único, mas se constitui na intersecção de um coletivo de práticas e saberes diversos que têm, em sua essência, um viés ético-político. Saúde mental se faz na coletividade e no respeito às singularidades; se faz no laço social e na convivência; se faz na promoção de condições de trabalho, renda, moradia e educação; se faz no acesso e na garantia de direitos; se faz com e através das políticas públicas.
A Psicologia, inserida nessa amálgama de saberes, pode contribuir quando alinhada com a justiça social, com a promoção da cidadania, com o combate aos estigmas, ampliando redes de cuidado e fomentando políticas públicas efetivas.
Assim, falar de saúde mental, neste dia e em todos os outros, é reafirmar a vida onde a norma silencia, é resistir onde o cuidado é renegado, é construir coletivamente formas de cuidar através de dignidade e respeito às subjetividades.
*Manuela Alencar é psicóloga formada pela Universidade Católica de Brasília (UCB), com percurso de pesquisa em Saúde Mental e Trabalho. Atualmente, é residente do Programa de Residência Multiprofissional em Saúde Mental do Adulto da Escola de Saúde Pública do Distrito Federal (ESP/DF), com experiência em diferentes pontos da Rede de Atenção Psicossocial (RAPS), como CAPS AD e CAPS Geral, Atenção Primária e Urgência e Emergência (SAMU/DF). Realiza pesquisa com ênfase em Saúde Mental, População em Situação de Rua e Políticas Públicas.
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O complexo industrial-manicomial do DF está mais vivo que nunca!, por Pedro Costa*
No Dia Internacional da Saúde Mental, é preciso denunciar: O Distrito Federal tem uma das maiores indústrias da loucura (ou, como argumentaremos, complexos industriais-manicomiais) do País!
Vejamos alguns dados. No DF, temos o nono maior quantitativo de leitos psiquiátricos privados das 27 unidades federativas (UFs). Mesmo com uma pequena redução nos leitos psiquiátricos privados de 2013 a 2023, indo de 516 para 498, o DF ainda era a unidade federativa com maior taxa de leitos psiquiátricos privados do país, junto do estado de Goiás: 17,5 por 100 mil habitantes [*2].
Soma-se a isto ao fato de ainda termos um manicômio público e ilegal, o Hospital São Vicente de Paulo (HSVP). Sua ilegalidade se dá pelo descumprimento, dentre várias normativas, da Lei Distrital n° 975, de 12 de dezembro de 1995, em que consta o seguinte: “[o]s leitos psiquiátricos em hospitais e clínicas especializados deverão ser extintos num prazo de 4 (quatro) anos a contar da publicação desta Lei”; e “[f]icam proibidas, no Distrito Federal, a concessão de autorização para a construção ou funcionamento de novos hospitais e clínicas psiquiátricas especializados e a ampliação da contratação de leitos hospitalares nos já existentes [...]”. A manutenção do HSVP desde 13 de dezembro de 1999 tem sido uma ilegalidade e um obstáculo ao fortalecimento e ampliação da Rede de Atenção Psicossocial (RAPS). Não à toa, o DF possui a segunda pior cobertura de CAPS habilitados de todo o país, com déficit significativo de leitos de saúde mental em hospitais gerais, bem como outras lacunas, as quais negritamos: nenhum Centro de Convivência; só dois Serviços Residenciais Terapêuticos (SRTs), com o primeiro de 2023 etc.
Não suficiente, ainda vemos o financiamento público de instituições privadas e manicomiais, como a Clínica Recanto. Em buscas no Portal da Transparência, só em 2024 foram R$ 5.713.313,59 transferidos do fundo público do GDF para ela.
Mencionamos também o caso das chamadas Comunidades Terapêuticas (CTs), fartamente abastecidas com fatias do fundo público pelo Governo do Distrito Federal, via Fundo Antidrogas do Distrito Federal (FUNPAD), gerido pelo Conselho de Política sobre Drogas do Distrito Federal (CONEN) e vinculado à Secretaria de Justiça e Cidadania (SEJUS). Em consulta ao Portal da Transparência do Distrito Federal, constatamos que 11 CTs receberam R$3.116.968,82 no ano de 2023. A média de repasse foi de R$283 mil para cada CT, com uma média mensal de mais de R$23 mil. Se cada CT recebe R$1 mil por vaga, o CONEN, via FUNPAD, financiou uma média aproximada de 23 vagas por mês e 283 vagas por ano nas 11 CTs.
Em 2024, cinco CTs receberam um montante de R$1.661.980,93 do FUNPAD. Sobre a diminuição nos valores repassados de 2024 para 2023 e no número de CTs contempladas, é importante sinalizar que, considerando o caráter privado e asilar-manicomial destas instituições, o ideal é que elas não recebam financiamento público e não “apenas” que este repasse diminua. O ideal de financiamento público às CTs é zero.
Tanto em 2023 quanto 2024, o CONEN destinou os recursos do FUNPAD apenas para CTs. Nenhuma outra modalidade de serviço ou instituição, mesmo público, recebeu verbas do FUNPAD no período analisado. Esse é o modus operandi do CONEN desde pelo menos 2012. De 2012 a 2021, foram R$ 23.129.700,00 [*3]. Entre 2019 e 2022 foram cerca de R$ 14 milhões via FUNPAD para 13 CTs [*4].
Esse cenário é ainda mais dramático quando se considera que o DF só possui uma Unidade de Acolhimento (UA) para adultos, no nível de atenção residencial de caráter transitório na RAPS, acolhendo e assistindo até 15 pessoas com necessidades decorrentes do consumo prejudicial de drogas. Existem apenas sete Centros de Atenção Psicossocial Álcool e outras Drogas (CAPSad), sendo que, destes, só dois eram do tipo III, funcionando 24h, durante fins de semana, feriados e com leitos para acolhimento noturno.
A partir do exposto, podemos constatar que a indústria da loucura no DF está mais viva do que nunca. E ela se desenvolve sobretudo por meio da transferência do fundo público para serviços privados e manicomiais, como é o caso da Clínica Recanto e das CTs. Ou seja, essa indústria é abastecida pelo Estado, por meio de sua faceta manicomial, seja pelo financiamento público (direto e indireto, por exemplo, com as isenções fiscais), seja pelo abastecimento das instituições com as pessoas, a partir das internações compulsórias e demais mecanismos de depósito de gente (como o Acolhe DF). Tudo isso conforma um complexo industrial-manicomial bastante vigoroso e lucrativo. Por fim, todo esse processo se dá num contexto de uma RAPS precária, ao passo que tende a recrudescer tal precarização, justamente por transferir ao manicômio o financiamento que deveria ser destinado aos seus serviços públicos e substitutivos.
Mais do que nunca, precisamos lutar contra os manicômios, em todas as suas formas.
Por um DF sem manicômios!
*Pedro Costa é psicólogo, mestre e doutor em Psicologia. É professor do Instituto de Psicologia da Universidade de Brasília
[*2] INSTITUTO DE ESTUDOS PARA POLÍTICAS DE SAÚDE (IEPS). A oferta e distribuição de serviços de saúde mental no Brasil entre 2013 e 2023. Boletim Radar+SUS, n. 2, p. 1-11, 2025.
[*3] COSTA, P. H. A. Comunidades Terapêuticas no Distrito Federal: “controle” social e saqueio do fundo público. Revista de Políticas Públicas, São Luís, v. 27, n. 1, 2023.
[*4] FREITAS JÚNIOR, L. C.; COSTA, P. H. A. Financiamento público das comunidades terapêuticas do Distrito Federal (2019-2022): chancelamento estatal à violência manicomial. In: GARCIA JÚNIOR, C. A. S.; CECCON, R. F. (Orgs.). Narrativas de violência e saúde mental: experiências e territórios. Porto Alegre: Editora Rede Unida, 2024. p. 308-333.
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#DescreviParaVocê: imagens coloridas destacam 10 de outubro como o Dia Mundial da Saúde Mental e uma ilustração da silhueta de diversas pessoas com conteúdos diferentes no local de suas cabeças.Também são destacados trechos dos artigos disponíveis no site do CRP 01/DF, fotos de autores e a marca gráfica do Conselho.