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08/09: DIA INTERNACIONAL DA ALFABETIZAÇÃO

08/09: DIA INTERNACIONAL DA ALFABETIZAÇÃO


| 08/09: DIA INTERNACIONAL DA ALFABETIZAÇÃO |

Reflexões interseccionais de um Brasil desigual
por Sarah Lemes de Almeida¹

O Dia Mundial da Alfabetização (celebrado em 8 de setembro) não pode ser apenas uma data comemorativa. Ele deve ser um chamado à reflexão crítica sobre o que significa alfabetizar em um país marcado por profundas desigualdades sociais, raciais e de gênero. Alfabetizar não é apenas ensinar a decodificação de letras e palavras; é reconhecer que todo ato de ensinar a ler e escrever carrega escolhas políticas, culturais e históricas. 

Segundo a PNAD Contínua (2023)², 5,4% da população com 15 anos ou mais ainda não sabe ler nem escrever, o que corresponde a 9,3 milhões de brasileiros. As desigualdades regionais e raciais são evidentes: mais da metade dessas pessoas (54,7%) vive no Nordeste; 5,2% são mulheres e 5,7% homens; e 7,1% são pessoas pretas ou pardas, comparadas a 3,2% de pessoas brancas. Esses números evidenciam que o analfabetismo não é neutro, mas atravessado por estruturas sociais que historicamente marginalizam determinados grupos. 

No Brasil, portanto, os dados evidenciam que o analfabetismo atinge de forma desproporcional a população negra. Meninas e meninos pretos e pardos seguem sendo os mais penalizados por um sistema educacional que ainda insiste em invisibilizar suas histórias, seus saberes e suas existências. 

A racionalidade neoliberal aplicada à educação, sustentada por uma lógica produtivista, com salas de aula superlotadas, uma perspectiva de alfabetização em série e métodos que padronizam a aprendizagem da leitura e da escrita, desconsidera as histórias de vida e escolares que atravessam os estudantes na sua relação com a linguagem. Como consequência, aqueles que não acompanham o ritmo ou não encontram sentido no processo de alfabetização passam a ser frequentemente considerados portadores de algum problema de ordem biológica ou psicológica. 

No entanto, estamos falando de um sujeito que é marcado pela história e, portanto, seu processo de alfabetização envolve uma prática social e representação de mundo, como nos ensina Paulo Freire (1975; 2013). Ler e escrever, quando desconectados da realidade vivida por estudantes, tornam-se práticas vazias, sem engajamento daqueles que deveriam estar ávidos para serem alfabetizados. 

Alfabetizar de forma significativa é abrir espaço para que as crianças se reconheçam nos textos, nas narrativas e nos conteúdos que lhes são apresentados. É o que aponta a experiência da professora Ana Paula Venâncio (Centro de Referências em Educação Integral, 2021)³, ao propor uma alfabetização antirracista que rompa com os métodos tradicionais de ensino e valorize o protagonismo das crianças, permitindo que aprendam a ler e escrever como consequência de reflexões sobre suas vivências e o mundo ao seu redor. 

Essa perspectiva se confirma em contexto de pesquisa, como mostrou meu estudo de doutorado (Almeida, 2025) que buscou compreender o processo de alfabetização de uma menina negra, em situação de pobreza e distorção idade-ano, moradora de uma região administrativa do Distrito Federal, em um contexto marcado pelo racismo, considerando seus movimentos de reexistência e as intervenções escolares que mobilizaram sua história escolar. Em síntese, as intervenções coletivas em contexto escolar e em rede intersetorial permitiram criar estratégias diferenciadas que possibilitaram a estudante ser alfabetizada, considerando as muitas formas dela dizer sobre o que lhe acontecia. 

A escrita é um intenso processo simbólico, dinâmico e dialógico que possibilita compartilhar formas de dizer por escrito, para o outro e também para si, por meio das mais variadas formas de narrar a vida, os acontecimentos diários, as dúvidas, fantasias, aquilo que entende e também o que não entende do mundo (Smolka, 2018). Sendo a linguagem uma prática social, nascida no encontro e no reconhecimento do outro, é preciso perguntar: o que, em nossas relações e contextos sociais, tem impedido tantas crianças, adolescentes e adultos de aprenderem a ler e escrever? Quem tem se importado com o que esses estudantes têm a dizer sobre aquilo que sentem, pensam, vivem na relação com o mundo? O desafio que se coloca é grande: como transformar a alfabetização em um processo de humanização? 

Neste Dia Mundial da Alfabetização, reafirmamos que alfabetizar é fazer da leitura e da escrita instrumentos de emancipação, e não de opressão. É criar espaços para que se possa dizer a partir da escrita, mas também por meio de outras formas de expressão. Sobretudo, é importante que as pessoas se importem e compreendam a natureza social do que é dito. 

Que possamos nos inspirar em processos de alfabetização sustentados na concepção de escrevivência de Conceição Evaristo (2020), cuja escrita nasce da “observação e da absorção da vida” e da existência de mulheres negras, buscando narrar histórias e experiências frequentemente ignoradas pelo mundo: “Escrevivência não está para a abstração do mundo, e sim para a existência, para o mundo-vida. Um mundo que busco apreender, para que eu possa, nele, me autoinscrever, mas, com a justa compreensão de que a letra não é só minha” (Evaristo, 2020, p.35). Assim, alfabetizar é também criar condições para que vozes historicamente silenciadas possam ser ouvidas, reconhecidas e valorizadas, transformando o aprendizado em ato de resistência, humanização e justiça social. 


¹ Doutora em Educação pela Faculdade de Educação da Universidade Federal da Bahia, especialista em Psicomotricidade, membro do Fórum sobre Medicalização da Educação e da Sociedade, Psicóloga Escolar na Secretaria de Estado de Educação do Distrito Federal. 

² Divulgada pelo IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística) em: https://biblioteca.ibge.gov.br/visualizacao/livros/liv102068_informativo.pdf 

³ Entrevista publicada em 22 de julho de 2021 pelo Centro de Referências em Educação Integral Disponível em: https://educacaointegral.org.br/experiencias/professora-alfabetiza-criancas-partir-derodas-de-conversa-e-educacao-antirracista/ 

 

Sarah Lemes de Almeida é graduada em Psicologia pela Universidade Federal da Bahia (2007), possui especialização em Psicomotricidade (2010) pela Universidade Salvador, mestrado (2014) e doutorado (2025) em Educação pela Universidade Federal da Bahia. Atualmente é psicóloga na Secretaria de Educação do Distrito Federal e possui experiência na área de Psicologia, com ênfase em Psicologia e Educação, além de ser membra do Fórum sobre Medicalização da Educação e da Sociedade.

 

REFERÊNCIAS: 
ALMEIDA, Sarah Lemes de. Alfabetização em contexto de racismo: escrevivências de uma menina que amava e não gostava do cabelo dela. 2025. 194 f. Tese (Doutorado em Educação) – Faculdade de Educação, Universidade Federal da Bahia, Salvador, 2025. 
EVARISTO, Conceição. A Escrevivência e seus subtextos In: DUARTE, Constância Lima; NUNES, Isabella Rosado. (Orgs.). Escrevivência: a escrita de nós. Reflexões sobre a obra de Conceição Evaristo. Rio de Janeiro: Mina Comunicação e Arte, 2020. 
FREIRE, Paulo. Educação como prática da liberdade. 5° ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1975. FREIRE, Paulo. Pedagogia do Oprimido. 1° ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2013, ePUB. 
SMOLKA, Ana Luiza Bustamante. Da alfabetização como processo discursivo: os espaços de elaboração nas relações de ensino. In: Gontijo, Cláudia Maria Mendes; Goulart, Cecília M. A. A alfabetização como processo discursivo: 30 anos de A criança na fase inicial da escrita (Portuguese Edition). São Paulo: Cortez Editora, 2018. Edição do Kindle. 
SOUZA, Ana Lúcia Silva. Letramentos de reexistências. Culturas e identidades no movimento hip hop. Tese de Doutorado, Unicamp, 2009.


#DescreviParaVocê: a imagem colorida conta com uma chamada para leitura do artigo, além da marca gráfica do CRP 01/DF e de uma fotografia da autora. Sarah Lemes de Almeida é uma mulher branca, com cabelos longos e pretos, sorrindo, usando óculos de grau e uma roupa colorida.



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