Neste 25 de julho, data em que se celebra o Dia Internacional da Mulher Negra Latino-americana e Caribenha, o Conselho Regional de Psicologia do Distrito Federal (CRP 01/DF) compartilha entrevista concedida pela escritora, feminista negra e doutora em Sociologia, Fabiane Albuquerque. A autora dos livros “Ensaio sobre a raiva” e “Cartas a um homem negro que amei” reflete sobre a potência do pensamento de mulheres negras na região e discorre sobre os desafios profissionais para uma atuação comprometida com os princípios de justiça social que direcionam o exercício da Psicologia no Brasil.
Na entrevista, Fabiane Albuquerque aborda ainda a interface da Psicologia com outros campos científicos, pontua sobre o papel das políticas públicas e defende maior atuação do Estado na promoção de saúde e do bem-estar coletivo: “É falacioso o discurso de que o Estado gasta demais com pobres. Ele gasta com ricos, e isso precisa reverter. Mulheres negras, como o sujeito mais vulnerável desta estrutura, precisam do Estado máximo na vida para que consigam se reerguer desta condição. Profissionais comprometidos com a equidade, em todas as esferas, não podem se omitir. Não existe prática neutra”, avalia.
Confira a íntegra da entrevista:
1) Como a interseccionalidade de raça, gênero e classe ajuda a compreender as experiências de vida de mulheres negras na América Latina e no Caribe, e de que maneira essa compreensão pode orientar uma prática psicológica eticamente comprometida com a justiça social?
Os marcadores sociais como raça, gênero e classe não andam por aí separadamente. Somos a interseção de todos eles e, em algumas circunstâncias, a raça fala mais alto, em outras, a classe, em outras o gênero, mas isso depende do contexto. Por exemplo, uma pessoa negra em situação de rua tem muito mais chance de ser impedida de entrar num shopping center do que a Djamila Ribeiro, mulher negra, da classe média alta e super elegante. Na América Latina e Caribe, as três identidades juntas tornam o sujeito que as carrega o ser mais marginalizado e vulnerável das sociedades. Por isso a importância do feminismo negro como luta política que não hierarquiza nenhuma dessas opressões, tampouco diz qual a mais importante ou aquela que vem na frente. Os psicólogos e as psicólogas devem ser profundas conhecedoras dos impactos do racismo, do machismo e das desigualdades de classe na formação das subjetividades e no sofrimento psíquico que todos esses marcadores acarretam. Não existe sofrimento ou dor, do ponto de vista sociológico, puramente sensorial, sem a influência do meio em que vivemos. Os profissionais de saúde que ignoram as estruturas e que ainda praticam a profissão baseados numa ideia do sujeito universal da psicanálise, fundada na Europa por um homem rico, branco e heterossexual, fazem muito estrago na vida dos sujeitos que não estão nesse padrão.
2) Na sua avaliação, quais têm sido os principais espaços de resistência e reinvenção ocupados por mulheres negras nas sociedades latino-americana e caribenha, e como profissionais de Psicologia podem atuar para fortalecer essas iniciativas sem reproduzir lógicas coloniais, racistas, patriarcais e de outras formas de opressão?
Sou apoiadora dos movimentos sociais enquanto grupos de pressão dentro da sociedade. As mulheres negras estão em diversas frentes: nos movimentos negros, na luta pelo direito à terra, contra as barragens, no campo, nas periferias, nas associações de bairro, nos movimentos por moradia digna etc. Além do mais, estão na produção do conhecimento, fazendo ciência, escrevendo, pensando a sociedade. São nesses espaços que elas racializam o debate e apontam o povo negro como os principais atingidos. A luta das mulheres negras, associativa, tem uma força grande de transformação, muito mais do que as blogueiras e influenciadoras neoliberais que vendem ideias quais “ancestralidade”, “África”, “beleza negra”, apenas como produto estético, sem ligação nenhuma com as condições materiais em que a maioria dos negros e negras vive. Só vamos romper com a colonialidade do saber e do ser, atingindo a cultura, a economia e a política pela raiz. E isso as mulheres negras têm feito bem, embora sejam muito pouco vistas e ouvidas.
3) Considerando os efeitos históricos do racismo estrutural e do sexismo na constituição dos sujeitos, que desafios éticos se colocam à sociedade na escuta e no cuidado com mulheres negras?
Na sociedade, não temos receptáculos para a dor do povo negro, em particular das mulheres negras, vítimas das três opressões: classe, raça e gênero. E eu não acredito que terapia resolve tudo. Resolve no sentido de amenizar o sofrimento individual, mas a fábrica que o produz continua operante. As estruturas racistas e sexistas precisam cair e cairão com a luta do povo organizado. O cuidado das mulheres negras passa por salários dignos, pela independência dos homens, pelo cuidado compartilhado dos filhos, por escolas e creches de tempo integral, por um transporte de qualidade para que não passem 4 ou 5 horas no caminho para o trabalho etc. Se a escuta não passa por apontar o que causa o sofrimento dessas mulheres, não é escuta sincera, é, de novo, um paliativo ao neoliberalismo. Certa vez, em Goiás, conversando com uma mulher negra, empregada doméstica e faxineira numa escola, ela revelou ter passado a vida pegando 7 ônibus por dia. Quando eu devolvi com espanto essa jornada desumanizante, percebi que ela se sentiu mais à vontade para revelar detalhes de uma vida de exploração, racismo e violência de gênero. A escuta precisa devolver às mulheres que o que elas vivem não pode ser naturalizado, ou seja, esta super exploração de seus corpos e a subtração de afetos para o serviço dos mais ricos. Elas precisam se sentir legitimadas nisso. Palavras como “guerreiras” e “fortes” precisam dar lugar à indignação e à raiva.
4) Quais limites e possibilidades você identifica nas políticas públicas voltadas para equidade racial e de gênero na região, e como a atuação interdisciplinar entre Sociologia e Psicologia pode contribuir para a construção de práticas mais eficazes e transformadoras?
As políticas públicas são paliativas dentro do capitalismo. São importantes? Claro. Mas seria mais eficaz uma taxação das grandes fortunas para a construção de escolas e creches de período integral, a luta pela diminuição da passagem de ônibus, as linhas diretas pelos bairros, sem passar por terminais, a ampliação do SUS e, sobretudo, a valorização do salário mínimo. Mulheres que “crescem os filhos” sozinhas precisam de mais amparo, e não vamos acreditar que o Estado não tem dinheiro. Tem e muito. Recentemente, o deputado federal Fábio Teruel (MDB-SP) destinou 2,2 milhões de reais para asfaltar o condomínio onde mora com outros famosos. Além dele, diversos deputados têm abusado das emendas parlamentares, com diárias absurdas em hotéis, passeios privados, ONGs de fachada etc. O Estado de São Paulo aprovou o auxílio eletrônico para os promotores no valor de 22 mil reais. E isso prova que é falacioso o discurso de que o Estado gasta demais com pobres. Ele gasta com ricos, e isso precisa reverter. Mulheres negras, como o sujeito mais vulnerável desta estrutura, precisam do Estado máximo na vida para que consigam se reerguer desta condição. Profissionais comprometidos com a equidade, em todas as esferas, não podem se omitir. Não existe prática neutra.
5) Em sua trajetória acadêmica, de vida e de luta, que caminhos têm sido mais potentes para reconhecer e valorizar os saberes de mulheres negras, e como a Psicologia pode contribuir para essa valorização sem deslegitimar suas epistemologias próprias?
No meu caminho de vida e de estudos, a luta que surge do povo, da base, deve ser valorizada. Por isso, o ingresso das filhas das empregadas, dos porteiros, dos garis nos espaços acadêmicos trouxe novos ares para os estudos de raça, classe e gênero. Eles têm questionado de que mulher a gente fala, de qual corpo a gente fala, situa o pesquisador e os intelectuais no seu ambiente de influência. É preciso nos voltarmos para esses estudos, valorizar, criticar, apoiar essas produções que estão falando de sociedade, de Psicologia. As mulheres negras têm feito estudos potentes sobre diversas áreas do conhecimento e precisamos ampliar essas vozes. Isso passa por lermos esses materiais, discutirmos e divulgar. Vou deixar aqui registrado um trecho do livro de Brittney Cooper, uma feminista negra e estudiosa, para pensarmos o quanto a gente apoia as mulheres negras no discurso, mas as marginaliza na prática quando não as levamos a sério: “Além do cuidado, eu sugeriria que, para levarmos mulheres negras a sério como intelectuais, precisamos estar dispostas a confiar nelas. Ouso dizer, confiar? Por confiar, não quero dizer sempre concordar. Eu quero dizer reconhecer, apreciar, discordar, sentar-se e questionar. A maior parte dos acadêmicos foi treinada para confiar que homens brancos são capazes de ‘pensamentos profundos’” [tradução livre do livro Beyond Respectability: The Intellectual Thought of Race Women (Women, Gender, and Sexuality in American History), 2017].
Saiba mais
Destacamos a seguir alguns materiais elaborados pelo CRP 01/DF e pelo Sistema Conselhos de Psicologia que podem ser consultados para aprofundamento no tema:
#DescreviParaVocê: cards coloridos que contêm imagem de uma mulher negra de olhos fechados e cabeça erguida, um mapa mostrando parte da América Latina e Caribe, e foto da entrevistada. Há uma referência ao Dia Internacional da Mulher Negra Latino-americana e Caribenha, um trecho da entrevista, contendo reflexão da escritora Fabiane Albuquerque, e uma chamada para leitura do texto completo no site do CRP 01/DF, além da marca gráfica da autarquia.