Neste domingo (31), o Distrito Federal acordou horrorizado com a notícia da morte de cinco pessoas num incêndio no estabelecimento
Liberte-se, no Boqueirão, Paranoá. Outras onze pessoas ficaram feridas.
Segundo relatos de internos, o fogo começou por volta de 2h, na sede do estabelecimento, onde dormiam vinte pessoas. Com portas e janelas trancadas a cadeado, Darley Fernandes de Carvalho, José Augusto, Lindemberg Nunes Pinho, Daniel Antunes e João Pedro Santos foram queimados vivos. Internos que estavam em outro dormitório quebraram janelas e conseguiram retirar outras pessoas com vida.
Segundo o portal de notícias G1, o diretor e proprietário Douglas Costa de Oliveira Ramos afirmou à polícia que o estabelecimento funcionava, há cinco meses, sem alvará de funcionamento e sem a liberação de funcionamento pelo Corpo de Bombeiros.
A tragédia faz lembrar outras duas, de maiores proporções, no Rio Grande do Sul. Em 2016, na cidade de Arroio dos Ratos, incêndio no
Centro Novos Horizontes matou sete pessoas
[1] que estavam trancadas numa das alas. Em junho de 2022, no município de Carazinho, onze pessoas morreram queimadas
[2] em uma comunidade terapêutica (ct) custeada pelo Ministério do Desenvolvimento Social. Eram dez pessoas que também dormiam trancadas, além de um monitor.
Enquanto correm as investigações pela Polícia Civil do Distrito Federal, as poucas informações noticiadas ecoam o estado ilegal de coisas que os relatórios produzidos pelo Estado brasileiro revelam sobre essas casas.
Caracterização das ctsNão é possível tipificar as cts como espaços de tratamento a pessoas com necessidades associadas ao consumo abusivo ou problemático de álcool e outras drogas, pois elas não são formalmente equipamentos da saúde. Como denunciado pelo Relatório do Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura e do Grupo Psicpologia e Ladinidades (UnB), as cts, enquanto manicômios neoliberais, são instituições de violência e de violação de direitos
[3]. Isso fica nítido nas denúncias de variadas entidades e espaços de participação e controle social, como nas deliberações da V Conferência Nacional de Saúde Mental (CNSM), realizada em dezembro de 2023, em sua totalidade contrárias às cts.
Robusta literatura acadêmica e inúmeros relatórios de órgãos fiscalizadores do Estado brasileiro caracterizam as cts como uma mistura de manicômios, prisões, igrejas e senzalas
[4]. Como aponta relatório supracitado, a laborterapia se caracteriza como trabalho forçado, não-pago, em condições degradantes, análogo à escravidão e, muitas vezes, em regime de servidão por dívida.
Sob discurso de prática terapêutica, a atividade laboral compulsória é tida como meio de manutenção das cts, gerando lucro e vantagens financeiras às instituições e aos seus proprietários
[5]. Além disso, a maioria das pessoas internas às cts é negra e pobre, denotando o caráter racista e de classe de tais instituições. Seu moralismo proibicionista desconsidera a Redução de Danos como paradigma que deve orientar as políticas públicas na área.
Contudo, tais instituições ainda gozam de chancela estatal. A RDC 29/2011, da Vigilância Sanitária, que supostamente regulamenta o funcionamento dessas casas, é lacunar e omissa quanto aos critérios de segurança sanitária para seu funcionamento. Mesmo insuficiente, ela é solenemente descumprida pela maior parte das cts.
Como exemplo da chancela ativa do Estado brasileiro às cts, dentre as inúmeras iniciativas de caráter municipal, estadual e federal, mencionamos a criação no Governo Federal de um departamento para as cts no Ministério do Desenvolvimento Social (MDS), o Departamento de Entidades de Apoio e Acolhimento Atuantes em Álcool e Drogas.
Recursos públicos que deveriam ser alocados em serviços de base territorial e comunitária, como os CAPS AD e Unidades de Acolhimento, acabam sendo transferidos através de emendas parlamentares para as cts. O Estado deve investir no Sistema Único de Saúde (SUS) laico, público, gratuito, igualitário e universal, bem como do Sistema Único de Assistência Social (SUAS). Esta é mais uma medida de privatização das políticas sociais, já que aprofunda a transferência do fundo público para entes privados. Além disso, financia instituições de caráter asilar-manicomial e escravocrata, concorrendo com os serviços públicos substitutivos da RAPS, e desrespeitando a Lei da Reforma Psiquiátrica.
Recomendações do CRP 01/DFConsiderando que o Conselho Nacional de Assistência Social (CNAS) não reconhece as cts como entidades da assistência social e do SUAS, recomendamos ao
Ministério do Desenvolvimento Social que:
• determine o fim do departamento das cts; e
• garanta a destinação de mais investimentos aos CRAS, CREAS, Centros POP, entre outros serviços do SUAS, e em políticas de moradia, trabalho e renda, afirmando sua função precípua de proteção social.
Uma vez que cts não devem contar com a omissão ou leniência de nenhuma pasta do Governo Federal, recomendamos ao
Ministério da Saúde que:
• atualize a norma expedida pela Diretoria Colegiada da ANVISA, superando a RDC 29/2011;
• fiscalize, junto aos órgãos de controle e participação social e demais entidades competentes, as CTs com Cadastro Nacional de Estabelecimentos de Saúde (CNES) e desative os referidos CNES;
• retire as cts da RAPS, através de atualização normativa;
• aumente o orçamento e intensifique as habilitações dos dispositivos substitutivos da RAPS, como as UAs, os CAPS, CAPS AD, leitos e enfermarias em saúde mental nos hospitais gerais, equipes de consultório na rua, Centros de Convivência, Serviços Residenciais Terapêuticos e demais; e
• implemente um plano nacional de transição antimanicomial, conforme deliberações da V CNSM.
Considerando as circunstâncias inaceitáveis da morte de mais cinco cidadãos do Distrito Federal, recomendamos ao
Ministério Público do Distrito Federal e Territórios que:
• investigue a
Liberte-se; e
• investigue todas as cts denunciadas por violações de direitos no Distrito Federal, segundo sua responsabilidade institucional.
Ao
Governo do Distrito Federal que:
• decrete luto oficial no Distrito Federal.
Por fim, fica o convite a todos os coletivos, entidades, movimento sociais, conselhos de classe e sindicatos que defendem uma sociedade sem manicômios que se unam à campanha interinstitucional do dia de luta contra as CTs, em 10 de outubro de 2025, e assinem nosso manifesto <
https://esquerdaonline.com.br/2025/08/18/manifesto-contra-as-comunidades-terapeuticas/>.
O Conselho Regional de Psicologia do Distrito Federal presta solidariedade aos familiares e amigos de Darley Fernandes de Carvalho, José Augusto, Lindemberg Nunes Pinho, Daniel Antunes e João Pedro Santos. Estamos disponíveis para apoiar as famílias na busca por justiça.
Pelo fim do departamento de cts no MDS!
Em defesa da Reforma Psiquiátrica!
Pelo fim das cts!
Pelo fim de todos os manicômios!