No dia 20 de junho, é celebrado o Dia Mundial das Pessoas Refugiadas, uma data instituída pela Organização das Nações Unidas (ONU) para conscientizar sobre a situação de milhões de pessoas que são forçadas a deixar seus países de origem em razão de conflitos, perseguições ou crises humanitárias.
No campo da Psicologia, o trabalho com pessoas refugiadas demanda um olhar sensível para os impactos psíquicos do deslocamento forçado, da perda de vínculos e da reconstrução da identidade em contextos de acolhimento frequentemente marcados por xenofobia, racismo e outras formas de opressão. Além de oferecer escuta qualificada, a(o) profissional de Psicologia é chamada(o) a atuar pela autonomia dos sujeitos, reconhecendo suas histórias, desafios, saberes e potencialidades.
Nesta série de entrevistas, convidamos profissionais de diferentes áreas que atuam junto a pessoas refugiadas para compartilhar experiências e reflexões sobre o tema. Hoje, publicamos a entrevista concedida pela professora do Departamento de Saúde Coletiva da Universidade de Brasília (UnB), Muna Muhammad Odeh. Cidadã palestina, bióloga e especialista em Antropologia Médica pela London School of Hygiene and Tropical Medicine de Londres, Muna Muhammad Odeh é mestra em Estudos Sociais e Econômicos pela University of Manchester, pesquisa e publica sobre o tema refúgio, migração e saúde mental com foco em gênero e sistemas de saúde.
Confira:
1) Como pesquisadora, professora de saúde coletiva e cidadã palestina, como a senhora tem vivenciado o impacto do conflito com Israel?
Como professora e pesquisadora na área de saúde coletiva, entendo que nosso papel é analisar as relações de poder que operam na história de vida de indivíduos e de populações, em seguida caracterizar as partes envolvidas e buscar entender quais mecanismos de controle são acionados pelas forças dominantes, bem como identificar as respostas dadas como assertivas de direito à vida e à dignidade.
Neste sentido, gosto muito da definição dada pelo Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) quando dizem que "saúde é a capacidade de lutar contra aquilo que nos oprime". É exatamente nesse entendimento que vivo o atual momento de luta anticolonial do meu povo, que busca uma vida digna e de plena autodeterminação.
É preciso especificar o que costuma ser chamado de “conflito entre Israel e Palestina”: trata-se de um conflito entre colonizador e colonizado, condição essa que demarca a vida do povo palestino há mais de cem anos e é anterior à autoproclamação de Israel pelo movimento sionista em 1948. Esse movimento atuava com o total apoio militar e político da Grã-Bretanha, poder imperialista designado em 1920 pela Liga das Nações - entidade controlada por potências do ocidente após a Primeira Guerra Mundial - para atuar em mandato da Palestina histórica, onde cumpriu, em uma relação brutal e colonial, seu controle sob o povo palestino e suas terras até o ano de 1948.
Foram 28 anos de mandato britânico que favoreceram o movimento sionista, a confiscação de terras e o desequilíbrio demográfico com o aumento significativo da população judia, possibilitando com tudo isso a criação do estado israelense. O período do mandato britânico foi também marcado pela incessante luta anticolonial palestina contra o roubo de suas terras e a sua subjugação.
Vimos então que é preciso historicizar e contextualizar uma realidade que foi desconstruída e falsamente apresentada por forças coloniais ocidentais, de modo a dar primazia a Israel e sua população judia às custas do povo palestino originário, forçosamente expulso de sua terra com a execução de mais de 50 m4ss4cr&s bárbaros - a exemplo de Deir Yassin e Tantoura - e por meio de uma guerra desigual, tendo apoio total do racismo colonial de potências militares do Ocidente.
Para garantir seu domínio, Israel efetivou um processo de limpeza étnica e de deslocamento forçado dos sobreviventes palestinos, que se tornaram os primeiros refugiados em 1948, momento que chamamos em árabe de Nakba, sinônimo de um estado de calamidade e de catástrofe que acometeram um povo cujas terras, vidas e futuro foram roubados em um ato de profunda injustiça.
Este é o marco histórico fundante da questão palestina por meio do qual metade do povo palestino encontra-se hoje em condição de refugiados ou em exílio político pelo mundo.
É um caminho longo rumo à libertação que nós, como povo palestino, trilhamos até hoje em desafio a poderes coloniais que miram tão somente o lucro material e o controle de povos subjugados à força. Vivemos o momento com profunda tristeza pela contínua limpeza étnica contra nós pelas mãos do apartheid de Israel, ao mesmo tempo em que assumimos uma inabalável persistência Sumud, e vivemos principalmente com a esperança que Angela Davis defende ser “um ato político”, pois é esta esperança que nos abastece com sabedoria e visão, bem como a convicção de que todo colonialismo acaba e que a nossa luta não será em vão.
2) Quais são os principais desafios enfrentados pelos sistemas de saúde em contextos de guerra prolongada, como o que ocorre na Palestina?
A luta palestina contra o colonialismo de Israel se estende há 77 anos, portanto um período prolongado e que foi marcado pela contínua beligerância do poder colonial em um esforço de 4niquil4çã0 e de produção de morte. Pretendo focar a minha resposta na Faixa de Gaza, pois ela representa o que chamo de “a síntese e a condensação das práticas coloniais israelenses”, sempre repressivas, sempre bélicas.
Na atualidade, está em curso a quinta guerra contra Gaza desde 2007, o que tem resultado no progressivo empobrecimento da população palestina e que é consequência de diversos tipos de perdas: a morte ou ferimento de membros da família, muitas vezes os provedores, levando crianças e adolescentes a abandonarem seus estudos na busca de meios de sobrevivência e situações de guerra que emergem como rupturas marcantes no curso de vida de toda uma população.
Quanto ao sistema de saúde propriamente dito, há de se lembrar que Gaza viveu um cerco militar aéreo, terrestre e naval imposto por Israel desde 2007, tendo total controle da entrada de milhares de itens de uso comum, por exemplo, na construção civil, na produção de alimentos, vestimenta e na área de saúde, equipamentos e aparelhos clínicos e laboratoriais, sendo proibida a sua compra ou importação, o que deixou os serviços de saúde dependentes de doações externas de órgãos internacionais e da ONU mas que, de toda forma, tinham que obter a liberação do poder colonial de Israel.
Trata-se de uma agressão militar bélica por parte de Israel contra a população de Gaza, quase na sua totalidade civil, indefesa e que carece de todo tipo de proteção, sejam abrigos para se salvar dos ataques aéreos ou até espaços seguros, já que Israel, em um período recorde e com uso excessivo de bombardeio, acabou por destruir mais de 80% dos prédios e edificações desde outubro de 2023.
Essa falta de abrigos e de espaços seguros face aos ataques bélicos acabou por exacerbar os números, tipos e gravidade de ferimentos que acometeram a população de Gaza. Os números oficiais são alarmantes: mais de 60 mil pessoas mortas, 80% sendo mulheres e crianças, com o dobro desse número ainda sob escombros, mais de 2 mil crianças com uma ou mais partes do corpo amputadas e dezenas de milhares de crianças órfãs; portanto, em situação de extrema vulnerabilidade.
Há de se lembrar que um dos principais componentes dos sistema de saúde são os hospitais e centros de saúde, e que estes foram alguns dos alvos mais atingidos por Israel em bombardeios e destruição, de modo a aprofundar o gen0cídi0 contra o povo palestino, privando-o de qualquer assistência médica, contrariando toda e qualquer ética humana.
Outro componente do sistema de saúde de Gaza que foi alvo militar de Israel são as equipes médicas: centenas de médicos e paramédicos foram m0rt0s, sequestr4d0s, levados à prisão e tratados com notável crueldade, tendo sido pelo menos dois médicos estupr4d0s e mortos sob t0rtur4.
Os desafios permanecem neste cenário de guerra que já dura mais de 600 dias, com a aniquilação contra o povo palestino tendo se agravado pelo bloqueio de Israel para a entrada de água, alimentos, remédios e qualquer ajuda humanitária. Como resultado, se instalam dois outros tipos de guerra: a biológica, manifesta na insegurança alimentar profunda e nas mais de 30 mortes por fome de crianças e bebês; e a segunda é a guerra química, também planejada por Israel onde houve o bombardeio e total destruição das redes de esgoto e de tratamento sanitário, bem como de água potável, expondo a população a condições ambientais de grave insalubridade.
Fica evidente, conforme declarado por órgãos internacionais, que o objetivo de Israel, apoiado por seus aliados de países ocidentais imperialistas, é a aniquilação do povo palestino em Gaza, tornando o lugar inabitável e concluindo seus crimes contra a humanidade com a sua expulsão e limpeza étnica.
O sofrimento e as dores são imensos e, face a esta crueldade do colonialismo, testemunhamos exemplos de heroísmo e de altruísmo por parte de profissionais de saúde em Gaza, que seguem dispostas e dispostos a cumprirem seu papel, dando cuidados de saúde em espaços precários, como em tendas ou em espaços provisórios próximos a locais onde a população se encontra. Essa recusa de sucumbir à guerra e buscar meios de contornar os obstáculos é um verdadeiro farol de esperança na história de um povo que enfrenta as tragédias de uma guerra sem igual neste século.
3) De que forma o trauma coletivo e o luto recorrente afetam a saúde pública de uma população sob ocupação e constante ameaça?
Todo poder colonial aposta em práticas regulares de ameaça, privação e de violência física e psíquica para assegurar a subjugação dos povos que coloniza. A pretensão desta estratégia é espalhar o medo, o enfraquecimento de relações sociais entre as pessoas, aumentar a desconfiança entre os indivíduos, diminuir a capacidade de enfrentamento e o rompimento do tecido social.
Existem duas camadas da experiência de trauma coletivo gerado pela ocupação israelense: primeiro a clara e reconhecida comunalidade das formas de opressão vividas diariamente pelo povo palestino, o que fortalece mecanismos de apoio e ajuda mútuos. Tais ações se vê no estado compartilhado de Sumud, definido pela psicóloga palestina Lena Meari* da seguinte forma: “Sumud não é apenas uma habilidade a ser treinada; [também] transcende para se tornar um estado de espírito psicoafetivo e um modo de ser político-ético que integra a cultura pública”.
O sofrimento coletivo e as experiências traumáticas permeiam a vida do povo palestino sob o colonialismo israelense e se estende para a outra metade em exílio como parte da experiência de fragmentação e de profunda injustiça. A luta palestina se resume na sua capacidade histórica de resistir a sistemas de imperialismo e colonialismo contrários à instituição de seus direitos à liberdade e à autonomia. Na saúde pública e na saúde coletiva, entende-se que esses direitos são partes constituintes de um bem-estar que seja acessível a todas as pessoas de forma equitativa e duradoura.
4) Você acredita que há espaço na saúde coletiva internacional para um posicionamento mais firme frente a crises humanitárias como a palestina? Como a solidariedade internacional — tanto entre profissionais de saúde quanto entre cidadãos — pode contribuir de forma concreta para aliviar o sofrimento do povo palestino?
Notamos, com certa satisfação, algumas manifestações públicas de repúdio ao genocídio contra o povo palestino por parte de entidades e associações brasileiras na área de saúde, a exemplo da Associação Brasileira de Saúde Coletiva — Abrasco (Nota de posicionamento “Não ao genocídio do povo palestino!”, disponível em: https://abrasco.org.br/nao-ao-genocidio-do-povo-palestino/), do Centro Brasileiro de Estudos de Saúde — Cebes (disponível em: https://cebes.org.br/cebes-condena-ataques-aos-profissionais-de-saude-na-palestina-e-exige-protocolos-das-convencoes-de-genebra-palestina-livre/34918/) e da Rede Brasil Palestina de Saúde Mental (Carta aberta de profissionais de saúde mental “Um ano da escalada do genocídio palestino e as violências contra o povo libanês”, disponível em: https://cebes.org.br/um-ano-escalada-genocidio-palestino-violencias-contra-povo-libanes/35290/).
Mas existe a necessidade de posicionamentos mais programáticos, como adotar a iniciativa do BDS (disponível em https://bdsmovement.net/es) [movimento palestino por liberdade, justiça e igualdade, que apela ao boicote de produtos, serviços e instituições israelenses, ao desinvestimento de empresas que apoiam Israel e à aplicação de sanções contra o país].
São atos de solidariedade ao povo palestino na sua luta anticolonial, mas representam igualmente uma continuidade da afirmação do direito dos povos à sua autodeterminação, assim como foi nas luta do Vietnã, da Argélia e, mais recentemente, da África do Sul, que mobilizaram apoio global e repúdio face às condições impostas pelo colonialismo e pelo imperialismo.
Por fim, a solidariedade é um ato ao alcance de todo indivíduo e coletivo, perpassa atos de protestos e marchas nas ruas, abaixo-assinado, campanhas informativas e, mais urgentemente, a implementação de BDS com incidência em decisões políticas de Estado e a formação da opinião pública de países e sociedades. Ocupa, portanto, essa solidariedade, um papel imprescindível no cumprimento do direito à vida e à dignidade.
*Referências:
MEARI, Lena. 2014. Sumud: A Palestinian Philosophy of Confrontation in Colonial Prisons. The South Atlantic Quarterly. 113 (3): 547-578. Disponível em: https://doi 10.1215/00382876-2692182.
MEARI, Lena. 2015. Reconsidering Trauma: Towards a Palestinian Community Psychology, Journal of Community Psychology, 43(1):76–86. Disponível em: https://doi: 10.1002/jcop.21712.
ADI, Ashjan S.; ODEH, Muna M.; ALI, Fátima A. et al. Para além dos retratos comuns sobre a condição de refúgio e de migração: narrativas de mulheres palestinas sobre seu protagonismo no Brasil. Tempus, actas de saúde colet, Brasília, 14(3), 219-233, set, 2020. Epub mai/2021. Disponível em: https://tempusactas.unb.br/index.php/tempus/article/view/2867/2088.
**Veja ainda:
“Para além dos retratos comuns sobre a condição de refúgio e de migração narrativas de mulheres palestinas sobre seu protagonismo no Brasil”, conferência com a professora convidada Muna Muhammad Odeh por ocasião da 1ª Reunião Aberta realizada pelo MIGRAST e pela Cátedra Sérgio Vieira de Mello com apoio do ACNUR. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=WgOLPvFMlSA.
#DescreviParaVocê: cards coloridos contendo uma imagem de pessoas em contexto de refúgio e uma fotografia da pessoa entrevistada com breve apresentação, uma chamada textual para leitura da matéria completa e a marca gráfica do CRP 01/DF.