Em 1º de maio de 1886, milhares de trabalhadores saíram às ruas em protesto durante uma grande greve realizada na cidade de Chicago, nos Estados Unidos, para reivindicar a redução da jornada de trabalho para oito horas por dia. Em uma manifestação naquele mesmo mês na Praça Haymarket, confrontos de líderes trabalhistas com profissionais de segurança pública, convocados para conter os protestos, resultaram em inúmeras prisões e mortes, marcando a data de luta pela dignidade no trabalho em todo o mundo.
Na avaliação do antropólogo e urbanista, Paíque Santarém, no momento em que a classe trabalhadora brasileira retoma a discussão de pautas como medidas tributárias para redução da desigualdades entre ricos e pobres, iniciativas para ampliação de direitos, como um transporte público acessível e de qualidade, inclusive nos dias de folga, e a redução do limite de horas de trabalho semanal, com a tramitação da Proposta de Emenda à Constituição (PEC) nº 8/2025, de autoria da deputada Erika Hilton (Psol-SP), resgata-se o debate coletivo sobre os últimos anos de derrotas da classe trabalhadora brasileira, com reformas nas áreas trabalhista e previdenciária que cessaram direitos celebrados pela legislação, e com o avanço de um projeto ideológico neoliberal para o enfraquecimento da proteção do emprego, da luta sindical e dos movimentos comprometidos com a melhoria de qualidade de vida no País:
“Acredito que o que já tem contribuído para a unidade da classe trabalhadora em luta contra os setores mais obscuros do capitalismo brasileiro é justamente a constituição de pautas que são comuns à atual situação de precarização da classe, pautas que sejam avanços de direitos. Nesse sentido, eu destaco três pautas especiais, que são a luta pelo fim da jornada 6x1, a luta pela isenção do imposto de renda para diferentes setores da classe trabalhadora e, por fim, a luta pela tarifa zero no transporte coletivo”, observa. “São três lutas que, a despeito de não terem sido adotadas como principais bandeiras pelas direções das principais organizações da esquerda brasileira, avançaram, conquistaram espaço e têm conquistado cada vez mais direitos dentro da sociedade. Então são pautas que devem ser observadas com muito carinho pelos setores interessados em construir lutas consequentes”, ressalta.
Paíque chama atenção para um possível caminho de reorganização da classe trabalhadora, que perpassaria a construção de pautas concretas e objetivas de luta: “A falta de consciência de muitos profissionais liberais sobre sua condição de classe necessariamente contribui para a precarização das suas condições de trabalho. Para além de uma perspectiva interna e subjetiva, acho que o problema que temos hoje é o da falta de organizações e de instituições concretas de lutas objetivas que pautem conquistas em direitos para esse setores. Isso é muito determinante para a dificuldade na constituição de consciência”, avalia o antropólogo e urbanista.
“Qualquer trabalhador que busque o caminho da solução individual para conquista dos seus direitos está fadado ao fracasso, porque no capitalismo as pessoas que organizam a produção têm como estratégia comum jogar um trabalhador contra o outro para reduzir salários. Então, na medida em que as pessoas começam a lutar entre si, disputar coisas entre si na ideia de ascendência individual, elas são presas cada vez mais fáceis na mão de empregadores que observam o conjunto do processo e deixam de contratar um para contratar outro, fazendo uma redução progressiva do salário. Nesse sentido, a união é fundamental, em uma leitura muito simples para que você tenha o mínimo de garantia de direitos”, reflete.
Para a coordenadora-geral da Rede de Redução de Danos e Profissionais do Sexo do Distrito Federal e Entorno “Tulipas do Cerrado” e membra da Central Única de Trabalhadoras e Trabalhadores Sexuais (CUTS), Juma Santos, “a consciência de classe, verdadeiramente solidária e com uma troca pedagógica horizontal, pode garantir o mapeamento de pontos de encontro e de especificidades entre experiências profissionais diferentes e marcadores sociais diferentes”, observa. “Com isso, podemos construir uma luta mais engajada e baseada em possibilidades concretas de enfrentamento às desigualdades”, defende.
Estudante de Serviço Social, Juma argumenta que o posicionamento adotado por movimentos de trabalhadoras e trabalhadores do sexo poderia ser aplicado por diversas categorias de profissionais liberais na luta por dignidade no trabalho: “Acredito que todos os outros movimentos sociais poderiam aprender com nossa prática baseada em redução de danos - que reconhece as violações do Estado, trata todas as pessoas como sujeito e busca adaptar-se às necessidades específicas de cada grupo e indivíduo”, argumenta. “Além disso, nossa abordagem é interseccional, uma vez que o trabalho sexual é realizado por um público profundamente diverso, e também pode ser uma contribuição para outros espaços”, pontua.
Como coordenadora e integrante de diversos movimentos sociais, Juma chama atenção para o lugar da saúde nesse cenário, destacando como a luta por melhores condições de trabalho pode refletir na melhoria da qualidade de vida das trabalhadoras e trabalhadores: “Em conversas que conduzimos junto a trabalhadoras sexuais do DF, sempre trazemos a questão da regulamentação do trabalho sexual como possível medida crucial para reduzir as violências enfrentadas por nós. Nessas conversas, muitas profissionais do sexo associam isso à adoção de medidas relacionadas à saúde mental. Muitas apontam se tratar de uma ocupação que tem potencial para diminuir a sua saúde mental. Por outro lado, outras associam essa condição ao contexto de preconceito e desregulamentação, e não ao trabalho em si. De todo modo, sugerimos sempre que todas busquemos fontes de cuidado para nossa saúde integral, relacionadas à boa alimentação, uso consciente de drogas lícitas e ilícitas, entre outras”, sinaliza.
Psicologia em luta por direitos
A psicóloga e conselheira regional de Psicologia, Isadora Araújo, observa como a Psicologia vem se localizando no cenário de lutas da classe trabalhadora: “A Psicologia brasileira se estabeleceu ao longo da história enquanto prática individualista e individualizante. Mesmo com ramos de estudo sobre os grupos e a Psicologia Social, muito de nossa identidade profissional está baseada na análise de experiências individuais”, explica. “Acredito que é fundamental que as psicólogas se entendam como trabalhadoras, e que questões comuns do nosso trabalho possam alcançar também o debate público, especialmente em temas como a garantia de boas condições de trabalho para a nossa classe”, argumenta.
“A precarização traz uma revolta inevitável”, reflete a psicóloga. “A formação em Psicologia é vista como um investimento, de onde se espera um retorno (financeiro, afetivo, social...). As profissões ligadas ao ato de cuidar têm um histórico de desvalorização por diversos aspectos, especialmente porque o cuidado pode ser visto como um gesto de caridade, de abnegação, indigno de participar da dinâmica de troca financeira. Falar do trabalho da psicóloga enquanto meio de sustento e de realização pessoal é um diálogo difícil de travar, porém necessário. O Censo da Psicologia Brasileira [disponível em: https://site.cfp.org.br/censopsi-2022-cfp-divulga-os-resultados-da-maior-pesquisa-sobre-o-exercicio-profissional-da-psicologia-brasileira/], por exemplo, mostra como parte significativa de nossa categoria tem mais de um emprego, muitas vezes para complementar renda - e não para se manter atualizada no que tange as suas práticas psicológicas. Essa indignação está em muitas de nós e, neste momento histórico, pode ser canalizada para vitórias concretas”, defende.
A conselheira, que coordena também os trabalhos do Centro de Referência Técnica em Psicologia e Políticas Públicas (Crepop) no Distrito Federal, acredita no fortalecimento de espaços de diálogo coletivo como ferramenta para mudança da realidade das condições de trabalho da categoria: “Essa individualização da prática se repete nos momentos de reflexão sobre o trabalho, mas estar junto de colegas de profissão que vivem o mesmo momento pode ser muito pertinente nessa construção. Há alguns anos vemos a desvalorização das entidades sindicais, e até mesmo uma difamação do seu papel no mundo do trabalho. A perspectiva da luta pela própria classe tem se diluído em outras demandas contemporâneas, como benefícios sociais e comunitários para quem faz parte de "grupos seletos", como descontos em compras e planos de saúde. O resgate de espaços comunitários de diálogos e reflexão sobre o trabalho deve ser feito e, se for com o apoio dos sindicatos, melhor ainda. As rotinas de trabalho atualmente não são desenhadas para contemplar momentos de ‘comunhão’, digamos assim”, exemplifica Isadora. “A Psicologia que nos ensinaram não atende mais a sociedade que temos e a sociedade que integramos. Cabe a nós usar essa raiva para mudar as estruturas. Quem sabe assim poderemos ter a chance de sobreviver do nosso trabalho e ter boas histórias para contar.”
#DescreviParaVocê: Imagens de profissionais convidadas(os) pelo CRP 01/DF para refletir sobre a luta pela dignidade no trabalho, celebrada em 1º de maio. Há uma chamada para leitura da matéria completa e a marca gráfica do CRP 01/DF.