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DIA MUNDIAL DA JUSTIÇA SOCIAL: ENTREVISTA COM A DRA. JAMILA ZGIET

DIA MUNDIAL DA JUSTIÇA SOCIAL: ENTREVISTA COM A DRA. JAMILA ZGIET


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| 20 DE FEVEREIRO: DIA MUNDIAL DA JUSTIÇA SOCIAL |

O que a Psicologia e demais profissionais da saúde mental têm a ver com isso?

Entrevista com a Dra. Jamila Zgiet*

Nesta data em que o mundo chama atenção para os desafios na promoção da dignidade humana, erradicação da pobreza e garantia de bem-estar social, convidamos a doutora em Política Social para compartilhar com profissionais de Psicologia do Distrito Federal suas reflexões sobre as políticas de saúde mental, reabilitação psicossocial e luta antimanicomial no Brasil.

*Jamila Zgiet Rodrigues Santos é assistente social, doutora em Política Social pela Universidade de Brasília (2019) e servidora da Secretaria de Estado de Saúde do Distrito Federal. Tem experiência em planejamento, pesquisa e gestão de políticas sociais e estuda política e práticas em saúde mental, reforma psiquiátrica, Serviço Social, trabalho e moral capitalista.

1) Em seu mais recente estudo, prestes a ser lançado em livro, você reflete sobre a centralidade histórica do trabalho assalariado na perspectiva da reabilitação psicossocial, questionando em que medida a premissa de busca de cidadania e autonomia levantada pela reforma psiquiátrica brasileira encontra, de fato, lugar em um mercado de trabalho notadamente alienado e adoecedor, conforme já apontaram muitos estudos sobre o trabalho no sistema capitalista. Na sua avaliação, qual a importância dessa reflexão por parte das/os profissionais da saúde mental e como isso tem impactado a vida das pessoas com transtorno mental em contato com os serviços psicossociais ou demandantes de benefícios previdenciários e socioassistenciais?

Tendemos a achar que as pessoas deveriam trabalhar para ficar bem. Sempre ouvimos que "mente vazia é oficina do demônio" e que "o trabalho enobrece". Numa sociedade capitalista, na qual as pessoas precisam vender sua força de trabalho para comprar itens de sobrevivência, é evidente que o trabalho assalariado é que dá acesso a melhores condições de vida.

Por outro lado, o trabalho assalariado é um elemento gerador de sofrimento e adoecimento. O adoecimento mental, por sua vez, muitas vezes é visto como "falta de deus", "falta de força de vontade", "excesso de pensamento negativo". Ou seja, tanto o "não trabalho" quanto o adoecimento são moralmente depreciados.

Nos serviços de saúde, é comum ver os profissionais julgando pacientes com transtorno mental, que buscam tratamento e um afastamento do trabalho. Julgamos quem procura uma forma menos difícil de viver, quem procura um auxílio socioassistencial, gratuidade no transporte público, auxílio-doença quando contribuintes da previdência social. Não vemos a mesma fúria quando um médico acumula diversos vínculos empregatícios, trabalha mal, faz atendimentos de cinco minutos e chega com um carro importado ao local de trabalho. Não julgamos pessoas empregadas em cargos altos que solicitam afastamento em serviços privados de saúde. O que se vê é um afastamento entre profissionais e usuários dos serviços públicos. Ambos são da classe trabalhadora, mas os empregados - no caso, principalmente os servidores públicos - veem-se como pertencentes a outro grupo, como se não dependessem do trabalho para sobreviver, assim como aqueles que são atendidos.

Quando falo da dialética das alienações, é isso. A loucura é uma alienação em relação ao "mundo real", mas o trabalhador que se submete ao assalariamento sem questionar e se posiciona contra pessoas que estão na mesma condição também não pode ser tido por "normal", porque se afasta da sua humanidade. Afinal, o trabalho só é libertador quando há controle da ação, quando o sujeito sabe o que e para que está trabalhando, quando se apropria do resultado do seu trabalho. Isso acontece quando produzimos algo de que temos necessidade, cujo processo de produção é também de aprendizado, promove uma troca entre a pessoa e aquilo que ela transforma. Falando mais da prática, pessoas com transtorno mental não têm igualdade de oportunidades no mercado de trabalho, que hoje exclui até os mais bem formados.

2) Na apresentação de sua pesquisa de Doutorado, você expõe algumas indagações que a motivaram para desenvolver o estudo e uma delas foi: "no trabalho assalariado, mesmo que assistido, há lugar para todos?", ou seja, o mercado de trabalho consegue acolher e oferecer condições para o exercício profissional de pessoas com especificidades decorrentes, por exemplo, de diferentes tipos de autismo, quadro crônico de psicose, dependência química, entre outras condições? Como se desenvolveram essas questões ao longo do estudo?

Na verdade, essas questões surgiram na minha experiência como assistente social na saúde mental. Quando eu trabalhava em um hospital psiquiátrico, em um contexto político e social muito melhor do que o que vemos hoje, de acesso mais fácil às políticas sociais, já notava a crueldade de alguns profissionais no julgamento de nossos usuários, como se fossem preguiçosos e aproveitadores, como se utilizassem o transtorno mental para não trabalhar e ter acesso a "benesses do Estado". Os profissionais tinham uma visão muito negativa do pobre com transtorno mental e viam o pouco que essas pessoas teriam a receber do Estado como um privilégio.

Imagine que, na verdade, os transtornos mentais não dão direito ao Benefício de Prestação Continuada, a menos que sejam considerados deficiência intelectual. Os demais auxílios da assistência social não são para sempre e a ideia é que eles permitam que a pessoa passe a não necessitar mais da assistência. Assim ela foi pensada, como se quem passasse por ela pudesse em seguida começar a trabalhar e se tornar independente. Mas não há emprego para todos e a prestação continuada não se destina a todos que não trabalham, mas apenas àqueles que causam algum tipo de comoção: pessoas com deficiência incapacitante para o trabalho - com frequência comprovada de forma vexatória - e idosos com mais de 65 anos, se viverem em famílias com renda per capita inferior a um quarto de salário mínimo. Os demais programas com frequência são ameaçados e oferecem valores baixíssimos. Imaginamos que o mercado estaria disposto a receber as demais pessoas.

Eu trabalho em um Caps (Centro de Atenção Psicossocial) e atendo pessoas que não sabem enviar um e-mail com o próprio currículo, pessoas que não têm e-mail, pessoas que não têm fala organizada o suficiente para responder perguntas em uma entrevista de emprego. No entanto, por conseguirem se locomover e comprar pão na padaria sem ajuda, são tidas como aptas para o trabalho. A pergunta é: qual trabalho? Eu brinco que vou começar a enviar relatórios sociais em envelopes com a pergunta "você contrataria essa pessoa?". A sensação é de que os peritos vivem em outro planeta, em que basta estar em pé para ser capaz de ser contratado.

Além disso, quais empresas estariam dispostas a contratar alguém que precisasse de assistência, que tivesse alguém de referência para auxiliar? Significaria abrir mão de horas úteis de trabalho de outra pessoa para fazer algo com teor de caridade a quem tem transtorno mental ou viva em outra situação de desvantagem. Uma alternativa seriam as cooperativas sociais de trabalho. Mas mesmo essas têm seguido regras das empresas tradicionais e consideram injusto pagar o mesmo a quem consegue produzir muito e a quem não consegue. Por isso questiono se há lugar no trabalho assalariado - ainda que cooperado - a todas as pessoas. É preciso pensar em formas de garantir uma vida digna fora do trabalho assalariado, não só para os chamados loucos, mas para todos que por algum motivo não vendem sua força de trabalho.

3) Suas reflexões são trazidas para nós em um momento no qual o Brasil atinge a maior taxa de desemprego dos últimos anos, com mais de 14 milhões de pessoas fora do mercado de trabalho, segundo a mais recente Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad), feita pelo IBGE. Esses dados têm sido muito utilizados pelas autoridades públicas, dos diferentes Poderes, para justificar as chamadas reformas trabalhista, previdenciária etc. que, entre outros pontos, têm aberto possibilidades para o que especialistas estão considerando precarização do trabalho no Brasil. Como você enxerga esse contexto?

A precarização é mais uma manifestação das estratégias de ativação. Com o achatamento das políticas sociais, as pessoas se veem obrigadas a aceitar qualquer emprego por qualquer valor. É a ética capitalista do trabalho ficando acima dos direitos humanos, do direito à vida. No fundo, essa ética prega que quem não trabalha não merece viver. Unido à moral religiosa, o capitalismo inculca nas pessoas uma meritocracia inatingível para o cidadão comum, sem questionar, no entanto, as rendas advindas de heranças e de operações financeiras que nada têm a ver com trabalho assalariado.

Um problema da cultura da precarização é o enfraquecimento ainda maior da consciência de classe. Vendem a ideia de que o sujeito que utiliza o próprio veículo para transportar pessoas ou objetos, conforme as ordens de um aplicativo cujo dono esse trabalhador nunca verá, é um empreendedor, um empresário de si. Nada é mais falacioso, porque agora, além de vender sua força de trabalho, ele utiliza e arca com os custos dos meios de produção. O único meio que ele não controla e ao qual se submete é o aplicativo. É o fenômeno da uberização, discutido por Ricardo Antunes. Considero esse o extremo da alienação: a virtualização da submissão, do meio de produção, do pagamento. E esses aplicativos são elaborados seguindo muitos princípios da Psicologia Comportamental, com métodos de punição e incentivo automáticos. São trabalhadores sem direitos, ameaçados e pressionados o tempo todo, e sempre a um passo de ficar sem trabalho. É vergonhoso que o projeto de política de trabalho de um país seja algo assim.

4) Neste 20 de fevereiro, é celebrado o Dia Mundial da Justiça Social que, entre outros temas, propõe a reflexão da comunidade internacional sobre nossos avanços e retrocessos em termos de promoção da dignidade no trabalho, erradicação da pobreza e garantia de bem-estar social. Nesse sentido, um trecho de seu estudo faz mais uma provocação interessante: "Se antes a miséria era tida como um lugar próximo da glória de Deus, explicada por sua vontade, no século XVII ela se torna meramente uma questão moral. (...) Criam-se as figuras dos bons e dos maus pobres, daqueles que aceitam sua condição e se submetem às instituições, e dos que recusam a internação - e, por isso, são tidos como merecedores de suas circunstâncias." Na sua avaliação, como essa questão moral se apresenta hoje no desenvolvimento das políticas públicas relacionadas à saúde mental no Brasil?

Na saúde mental, acho que a principal manifestação dessa lógica lá do século XVII está, atualmente, nas comunidades terapêuticas. São locais normalmente criados e mantidos por entidades religiosas, com o propósito de "tratar a dependência química". Entre as atividades mais realizadas por essas entidades estão a oração - que deve ser feita várias vezes ao dia - e o trabalho - sob um falso conceito de laborterapia.

Há alguns anos coordenei, pela Codeplan, uma pesquisa sobre as entidades de tratamento para dependência química (ou transtornos advindos do abuso de álcool e outras drogas) reconhecidas pelo Conselho sobre Drogas do DF. Tive a oportunidade de visitar algumas dessas entidades e fiquei chocada com a realidade que encontramos na maior parte delas. Os leitos são, na verdade, camas em beliches com colchões com odor de urina e sujeira, não há lugar para armazenamento de pertences, as individualidades são violadas desde a imposição de um posicionamento religioso até a inexistência de objetos de uso particular. Em uma delas, havia placas nas áreas comuns condenando o sexo e o uso de cigarro. Em outra, não havia nenhum profissional conduzindo as atividades. Havia um caseiro, ou algo similar, que cuidava do local, enquanto os internos vagavam pelo espaço sem ter como ir embora, dada a distância da estrada. Em algumas, o local era incompleto e a função dos internos era construir os espaços. Todos trabalhavam como pedreiros ou ajudantes. Outras exigiam que o alimento fosse cultivado no local, com a implantação e manutenção de horta e gado pelos internos, que deveriam abater animais e fazer a comida.

O que mais assusta é haver incentivo financeiro do Estado para esse tipo de intervenção. Isso não é saúde mental, mas exploração do trabalho, além de constituir propaganda enganosa, porque não é assim que se trata alguém que abusa de álcool e drogas. Quando o Estado adota um discurso que defende esse tipo de iniciativa e a financia, o recado é que quem não se submete às regras da comunidade não merece cuidado. Isso vira justificativa para, por exemplo, tratar mal pessoas em situação de rua, que são consideradas dependentes químicas, mesmo que não sejam, para negar cuidado em saúde a quem não se submete ao trabalho forçado imposto por essas entidades etc.

A comunidade terapêutica é o manicômio dos nossos tempos. Estão querendo ressuscitar os antigos hospícios, desativar residências terapêuticas, desincentivar a implantação de Caps. Isso tudo é manifestação da ética capitalista do trabalho na saúde mental. O maior pecado do louco é ser pobre. E as religiões têm pregado que a fé é um caminho para tornar-se rico.

5) Para concluir, que desafios e possibilidades você vê, enquanto pesquisadora, para a promoção da justiça social no País e, mais especificamente, nas questões relacionadas ao acolhimento de pessoas em sofrimento mental?

A gente só atinge a justiça social com distribuição de renda. Não teremos isso enquanto não formos capazes de taxar grandes fortunas - e impedir que elas existam - e dar a todos os cidadãos e cidadãs condições realmente dignas de vida. Isso não se resume a um salário mínimo. Falo em acesso a educação, habitação, alimentação saudável, cultura, esporte, saúde pública de qualidade, transporte.

Quando admitirmos que a dignidade e a cidadania não devem advir do trabalho assalariado, mas do fato de sermos gente, alcançaremos a justiça social.

Na saúde mental, a justiça começa pela distribuição de poder entre os profissionais nos serviços de saúde. No âmbito da política pública de saúde mental, temos também que valorizar as práticas baseadas no território e nas características da população atendida. O desafio atual é retomar a valorização da ciência, dos direitos humanos, combater discursos fascistas e afins.

Como possibilidades, vejo o fato de já termos implementado serviços abertos de saúde mental, com os quais a população conta por já conhecer e valorizar. Os sobreviventes dos manicômios são testemunhas de onde se pode chegar com princípios excludentes e a história nos mostra o uso que esses locais já tiveram e o que já se fez com aparelhos de eletrochoque e cirurgias de lobotomia. Portanto, é preciso que os frequentadores e os profissionais de serviços de saúde mental sejam capazes de unir forças contra os desmontes. A manifestação popular é a única forma de impedir perdas nessa área. Espero que possamos contar com os conselhos de categorias profissionais, como o CRP e o CRESS, na defesa do Sistema Único de Saúde (SUS), do Sistema Único de Assistência Social (Suas) e das demais políticas sociais!

#DescreviParaVocê: o texto da entrevista é acompanhado por um card com fundo branco e detalhes em vermelho no qual aparece uma foto da entrevistada, Dra. Jamila Zgiet, uma ilustração de aspas dentro de um balão de diálogo e a marca gráfica do CRP 01/DF.



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