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HOMENAGEM: A TRAJETÓRIA ACADÊMICA E O LEGADO DA TEORIA DA SUBJETIVIDADE DE FERNANDO GONZÁLEZ REY

HOMENAGEM: A TRAJETÓRIA ACADÊMICA E O LEGADO DA TEORIA DA SUBJETIVIDADE DE FERNANDO GONZÁLEZ REY


No mês em que completaria 70 anos de idade, pesquisadores e ex-orientandos do teórico e professor cubano Fernando González Rey destacam as principais contribuições científicas do psicólogo durante os anos em que viveu no Brasil

Em março deste ano, a Psicologia recebeu a triste notícia do falecimento, em São Paulo, do teórico e professor Fernando González Rey, então com 69 anos de idade. Nascido na capital cubana, Rey formou-se psicólogo na Universidade de Havana em 1973 e tornou-se doutor em 1979 pelo Instituto de Psicologia Geral e Pedagógica de Moscou.

Fernando González Rey foi presidente da Sociedade de Psicólogos de Cuba (1986-1989), decano da Faculdade de Psicologia da Universidade de Havana (1995-1990) e vice-reitor da mesma universidade (1990-1995), chegando ao Brasil em 1995, quando se tornou professor visitante da Universidade de Brasília (UnB) e apresentou importantes contribuições científicas em diversas instituições dentro e fora do Brasil, entre elas o Centro Universitário de Brasília (UniCEUB), onde atuava como professor titular e pesquisador até o início deste ano.

Durante sua trajetória acadêmica, o foco de atenção teórica de González Rey foi o desenvolvimento do tema subjetividade em uma perspectiva cultural-histórica, bem como os problemas epistemológicos e metodológicos advindos dessa perspectiva de estudo, algo que ao longo dos anos rendeu à Psicologia latinoamericana grande projeção mundial.

O professor Gilberto Godoy, atual presidente do Conselho Regional de Psicologia do Distrito Federal (CRP 01/DF), que foi colega de Rey no UniCEUB, destaca “o aspecto humano do professor e sua imensa capacidade de comunicação.”

No mês em que o professor completaria 70 anos de idade, o Conselho Regional de Psicologia do Distrito Federal (CRP 01/DF) convidou os pesquisadores e ex-orientandos de González Rey, Daniel Goulart, Ana Maria Orofino Teles e Valéria Mori para falar sobre o legado deixado pelo professor e sua Teoria da Subjetividade. Confira:

Ana Orofino Teles: Nós conhecemos o Fernando em três momentos marcantes: eu conheci o Fernando que chega ao Brasil, Valéria conviveu com Fernando em tempos mais contundentes, de posicionamentos fortes em seu próprio pensamento e modo de ser e Daniel acompanha mais de perto esses últimos tempos de produção e expansão de seu pensamento.

Daniel Goulart: Acho que nós podemos começar falando um pouco de quem somos e de nossa relação com o Fernando. Eu me formei em Psicologia pela USP (Universidade de São Paulo). Posteriormente, vim fazer o Mestrado e o Doutorado na UnB (Universidade de Brasília) em Educação, orientado já pelo professor Fernando. De fato, eu o conheci ainda na Graduação em Ribeirão Preto, quando o Centro de Estudos em Psicologia, do qual eu fazia parte, o convidou enquanto conferencista da abertura de um evento acadêmico para os estudantes. Fernando, embora já fosse um grande nome da Psicologia, topou estar em um evento despretensioso, organizado por estudantes. Isso chamou muito nossa atenção, pois já marcava sua qualidade como ser humano e acadêmico, permeada por esse desejo de entrar em diálogo com pessoas diferentes, de contribuir com a formação de jovens e buscar formas de abrir portas e caminhos para o outro, que penso ser o que une as trajetórias de nós três: os caminhos que passamos a viver, marcados pela generosidade do Fernando. Meu campo de pesquisa, desde o Mestrado, é a saúde mental, de forma articulada à educação e ao desenvolvimento humano. Com base na obra do Fernando, a saúde mental não é uma dimensão que se restringe à existência ou não de “doenças”, mas que aborda a própria qualidade dos processos humanos, incluindo processos individuais e sociais gerados em determinado contexto cultural. Foi nessa perspectiva que passei a ter como campo de pesquisa serviços de saúde mental, sobretudo, aqui no Distrito Federal. Tenho discutido processos subjetivos implicados na gênese de transtornos mentais, na gênese de situações de sofrimento psíquico grave, buscando representações complexas que representem alternativas à ótica patologizante. Apoiados na teoria da subjetividade, temos avançado muito na explicação de como o sofrimento humano se insere em tramas de vida, marcadas por processos relacionais, pela história singular das pessoas, pelas dinâmicas sociais e institucionais. Por outro lado, temos avançado em como essa nova representação dos transtornos mentais pode fomentar práticas terapêuticas, ações de atenção à saúde mental, voltadas para o desenvolvimento humano e não somente para a remissão dos sintomas e o controle das crises - daí a ideia de que são práticas também educativas, no sentido amplo do termo. Além disso, temos pesquisado a dinâmica institucional dos serviços de saúde mental, como os Centros de Atenção Psicossocial (CAPS). Pesquisamos as formas com que essas produções subjetivas também se organizam no âmbito institucional, por exemplo, na atuação da equipe profissional, nas dinâmicas dentro da própria equipe e como isso se reverbera de diversas formas nos tipos de relação que são construídas dentro desse serviço. Temos feito essa discussão, tentando trazer a dimensão das relações significativas para as pessoas, bem como processos sociais mais abrangentes, como o modelo biomédico, o lugar que ocupa o especialista em nossa sociedade, bem como a instrumentalização da vida. Essa foi a base do meu Mestrado e do meu Doutorado. A partir desses trabalhos, as pesquisas continuam atualmente no grupo de pesquisa, vinculado ao CNPq, que eu coordeno no UniCEUB, tanto na Graduação em Psicologia, como no Mestrado. O grupo se intitula “Saúde mental, educação e subjetividade: da patologização ao desenvolvimento subjetivo”. É um grupo que, inspirado no próprio exemplo do Fernando, mantém a unidade entre pesquisa, ensino e ação profissional na comunidade.

Ana Orofino Teles: Eu me formei em Psicologia na UnB em 1997. Aos 18 anos ingressei num curso de Agronomia, mas percebi que esse não seria o meu caminho. Então busquei a psicoterapia para descobrir qual seria meu caminho e acabei por adotar a própria Psicologia como campo de estudos. E eu entrei na UnB em uma época em que a Psicologia ainda estava muito circunscrita ao comportamentalismo. Era um tempo em que tudo o que aprendíamos passava ou pela visão comportamental ou então pela Psicanálise. Como eu entrei buscando atuar em clínica, eu me aproximei dos professores da Psicanálise. Só que naquele tempo havia também um terceiro núcleo forte na Psicologia da UnB, que era a Psicologia do Desenvolvimento. Esse núcleo nos trouxe a abertura aos estudos da complexidade e, obviamente, eu me aproximei também desse núcleo, pois era um pensamento que convergia muito com minha própria visão de mundo e de humano, e eu acabo por fazer parte de um grupo de pesquisas coordenado pela professora Maria Helena Fávero, e é por meio dela que eu venho a conhecer o Fernando. Ela me fala: “Ana, está chegando um professor de Cuba e ele está precisando muito aprender a mexer com Windows e Word (naquela época nós éramos autodidatas dessa linguagem que era muito nova). Você pode ensiná-lo a trabalhar com o computador?”. Eu falei: “Posso! Claro que posso.” E ela disse: “E aproveita e faz a matéria dele porque ele é muito bom!” Então esse é meu primeiro encontro com o Fernando: eu o ensinando usar o computador e isso nos aproximou de uma maneira muito bacana. Importante eu destacar que Fernando não é o meu primeiro mestre dentro do ser psicóloga e psicoterapeuta, então eu não construi nenhuma idolatria na relação com ele e, isso somado a esse evento de eu primeiro ensiná-lo algo antes mesmo dele me ensinar o que sabia, fez com que nós nunca tivéssemos uma relação de hierarquia onde ele era o superior. Sempre tivemos uma relação muito mais fraterna, que também era algo muito próprio dele, essa relação que ele estabelecia conosco, essa atitude que eu quase não via em outros professores naquele tempo e naquele lugar. E a chegada dele foi um presente prá mim também porque eu estava exatamente no momento de começar meus estágios e Psicanálise não era o que eu queria e não tínhamos muitas outras opções de estágio na clínica, que era o que eu buscava. Fazendo a disciplina com ele eu me surpreendo com a maneira que ele abordava as questões e, principalmente, com a proposta de subjetividade social. Então eu lhe pergunto: “Professor, o senhor orienta estágio?” E ele falou: “Oriento, claro!¨ E ele fazia parte do departamento de psicologia clínica. Naquela época eu já tinha vontade de trabalhar com pessoas mais velhas e ele estava trazendo todo esse conceito da Psicologia Social, da Psicologia Comunitária… estava tudo chegando com força naquele tempo. E ele trazia tudo muito fresquinho, em uma linguagem muito diferente do que tinha disponível para nós. E é aí, então, que eu faço o meu estágio de Graduação com o Fernando, não com pessoas mais velhas, mas em uma escola, por sugestão e provocação dele. Isso em 1995/1996. E esse foi um trabalho muito pioneiro, muito bacana, que integrou a clínica, a educação e o social, e que pra mim foi também uma entrada importante na vida acadêmica, ainda durante a Graduação. Se você quer entender o Fernando, ele é isso: um professor que olha para você e fala: “Uau! O que você fez é importante! Não importa que você esteja na Graduação. O que você fez é importante, não deixe na gaveta.” E aí eu e a minha colega inclusive publicamos esse trabalho, que é uma coisa que alguns professores nos olhavam de cima a baixo com aquele sentido de: “Quem você pensa que é para escrever um livro?” Mas o Fernando não tinha isso. Ele olhava para nós como seres que podem produzir algo de valor mesmo sendo alguém finalizando uma Graduação. O que acontece é que eu finalizo o curso, publicamos o livro e eu me afasto, pois tinha filha para criar e também uma forte intenção de viver a prática da psicologia social comunitária, de organização social, e também de trabalhar com o meu marido na área de saúde (meu marido é dentista e nós temos uma parceria). Quando mais tarde, tempo que estávamos trabalhando em um curso de formação em odontologia, eu percebo que precisava me qualificar para poder orientar monografias (pois eu estava orientando dentistas a fazer monografias porque eles queriam sistematizar o conhecimento deles) então eu decido fazer o Mestrado na Faculdade de Educação. Nesse momento eu vivo uma dessas coincidências que não explicamos na vida: quando eu estou chegando para o meu Mestrado, o Fernando está chegando na Faculdade de Educação para orientar a Pós-graduação. Essa é uma linda “co-incidência”. Aí o Fernando lê o meu trabalho e diz: “Seu trabalho não é de Mestrado. O seu trabalho é de Doutorado. Faz rápido esse Mestrado e venha fazer Doutorado comigo!”. Tipo aquela sedução bem típica do Fernando que nós não conseguimos nos livrar… (risos) Então faço meu Mestrado bem rapidamente e começo a fazer o Doutorado com ele. Na verdade eu sempre tive o meu trabalho de consultório como psicóloga, mas como eu fiz o Doutorado e acabei por me envolver intensamente, fui dar aula no curso de Psicologia do IESB e fiquei lá por quatro anos e meio. Academicamente falando, quem me deu suporte foi a Teoria da Subjetividade de Fernando González Rey. Eu orientei estágio na clínica ao longo desse tempo todo tendo a teoria do Fernando como base e trabalhando o papel do psicólogo, do psicoterapeuta, com base na Teoria da Subjetividade. Enfim, ao longo de todo esse tempo foi o Fernando que me deu a mão para formar psicólogos e orientar trabalhos de estágio na clínica.

Valéria Mori: Na época em que a Ana estava terminando a Graduação, eu estava entrando no Mestrado, época em que eu conheci o Fernando. Eu tive uma questão com a minha orientadora, não deu certo e, como eu tinha bolsa, eles tinham que resolver o meu problema e colocaram o Fernando por acaso para ser o meu orientador. Então minha relação com ele foi por acaso. Eu fui a primeira orientanda de Mestrado dele no Brasil e foi assim que começamos um relacionamento muito importante em termos acadêmicos e em termos humanos. No Mestrado eu queria discutir temas que até o momento outros não se dispuseram a discutir. Eu acho que esse é um valor do Fernando, como ser humano e como professor, que eu levei comigo. Ele me disse: “Eu não estudo muito Jung, mas eu vou estudar com você.” Então acho que isso como professor e como ser humano marcou a minha relação… me emociono quando falo dele… marcou a minha relação com os meus alunos… ainda me emociono quando falo do Fernando. Eu acho que a postura dele como professor foi uma coisa que marcou toda a minha constituição como professora. Eu sinto que a presença dele é muito viva na forma como hoje eu me relaciono com o saber e com os meus alunos. Eu tive dois grandes professores, mas o Fernando tinha a característica de estar aberto para o conhecimento do outro, para a curiosidade do aluno. É como a Ana comenta, ele sempre pensava assim: “Como a gente pode pensar isso que você está colocando? O que isso significa em termos da própria subjetividade?” Sempre muito cuidadoso, curioso, para tentar pensar isso a partir da teoria. Eu acho que o Fernando, na minha formação, apresenta uma Psicologia que eu não conhecia. A cultura que eu tenho hoje em Psicologia é porque ele sempre instigou isso. Ele sempre me provocou: “Você tem que ler tal coisa, você tem que ver tal coisa, tem tal livro, compra esse livro”. Esse foi um hábito no nosso relacionamento. Eu sempre lendo alguma coisa, imediatamente mandava uma mensagem ou e-mail dizendo: “Eu estou lendo tal livro, vi tal coisa, o que você acha?” E ele dizia: “Então compra esse livro para mim.” Foi uma coisa muito constante no nosso relacionamento, de trocar muitos livros, de tentar discutir muito o que a gente lia. Ele sempre leu muito romance, tem autores que eu conheci com ele, o Sándor Márai é um desses e, quando a gente lia, a gente discutia os elementos do livro, o que a gente pensava sobre o livro. Ele traz para a minha vida uma forma de enxergar o mundo muito interessante. É o nosso papel como professor. Você provocar o seu estudante, você mobilizar… e a minha relação com ele não ficou só uma relação profissional. Virou uma relação de amizade de 23 anos. Depois do Mestrado, fiz Doutorado com ele. Ele acabou saindo da Faculdade em que eu estava e eu não defendi com outro professor. Fui para outra insituição em que ele orientava também o Doutorado porque eu fazia questão de ter o nome dele como meu orientador nesses dois momentos, já que ele participou da minha formação. Sinto que o Fernando era uma pessoa apaixonante. Tinha seus defeitos… Ele era enérgico, irascível, perdia muito as estribeiras. Era muito interessante porque ao mesmo tempo em que ele tinha momentos em que ficava mais nervoso, ele também tentava se refazer na relação com o outro, pedir desculpas etc. Ele era uma pessoa que pensava muito sobre o que fazia e tentava refazer muitos caminhos às vezes tortuosos nessas coisas que aconteciam. E essa preocupação muito grande de fazer os alunos dele pensarem. Eu acho que a maioria dos estudantes que conviveram com ele, cresceram pessoalmente e profissionalmente. Eu acho que essa é uma marca dos grandes mestres. Por mais que eles sejam polêmicos, são pessoas que levam você a crescer, se você aproveita. Do ponto de vista profissional, ele marca a minha formação como professora e como psicoterapeuta. A Teoria da Subjetividade é a teoria que acompanha a minha forma de pensar os processos na psicoterapia. Então desde sempre isso vem me acompanhando. Já fiz outras leituras que atravessam (você nunca enxerga só por uma linha), mas a mola mestra da minha forma de enxergar o mundo tem sido a Teoria da Subjetividade.

Daniel Goulart: Eu gostaria de retomar um aspecto que elas mencionaram. Fernando tinha mesmo uma capacidade especial de se conectar com o outro de forma muito profunda, de modo a fortalecer a relação, um vínculo que passa a fazer parte da vida do outro e passa a ajudar que a pessoa confie no próprio pensamento. A própria forma como ele lidava com a produção de pensamento era uma forma muito apaixonada. Ele não dissociava jamais vida e trabalho, vida e produção de pensamento. Isso se relacionava aos desafios da vida. Os desafios da história dele se tornavam material, uma espécie de matéria-prima para o pensamento. E ele se debruçava sobre isso. Então, esse entusiasmo que contagia na relação como pessoa, amigo, educador, vem um pouco dessa conexão que ele tinha com essa capacidade criadora dele. Como educador, Fernando era muito provocador. Isso se vincula a essa coisa de ser enérgico, de ser irascível. De fato, ele era uma pessoa que te deslocava o tempo todo de um lugar comum. Ele estava sempre buscando e, de alguma forma, questionando e buscando de fato que o outro conseguisse gerar seus próprios recursos a partir de um posicionamento próprio, que não seguisse a manada. E ele sempre foi muito frontal, essa era também uma característica dele. Um frontalidade no sentido de que ele também não era desonesto com as pessoas em hipótese alguma. Ele falava: “Prefiro ser às vezes considerado grosso do que hipócrita”. Ele dizia: “No meu país, se eu não falo na frente sobre o que eu penso, eu sou hipócrita. Aqui, seu eu falo, eu sou grosso. Então, eu prefiro ser grosso.” Mas isso se relaciona à autenticidade dele, que tinha um fundamento ético muito sólido. Ele expressava sua ética de forma muito profunda e consistente na relação com o outro. De alguma forma, se posicionar dessa forma era não ficar de melindre com as coisas, não falar ou agir pelas costas. Isso para ele era algo muito forte. Como autor, eu acho que três aspectos que marcam muito o Fernando são, em primeiro lugar, o trabalho. Fernando era uma pessoa que trabalhava incansavelmente, inclusive, nos fins de semana. Para ele, o trabalho era tão configurado subjetivamente que ele não o sentia como uma obrigação, pois essa era a própria forma de ele viver. Por isso, o segundo aspecto que eu ressaltaria era a cultura vasta que ele tinha: estabelecia diálogos com Literatura, com outras ciências sociais, com a Antropologia, com a Filosofia. Mas isso vem de uma cultura de trabalho muito forte, além de uma espécie de encanto pelo pensamento e por diferentes formas de ver e sentir a vida. O terceiro aspecto é a ousadia de pensar, a ousadia de ser criativo e de não assumir como psicólogo, como cientista, um referencial que geralmente vem de fora. Eu acho que esse é um dos valores da Teoria da Subjetividade, já entrando nesse ponto. O fato de ser um referencial latinoamericano a partir, obviamente, de antecedentes europeus, com diálogos permanentes de outros lugares, mas que tem a marca da criação latinoamericana.

Valéria Mori: Porque temos uma Psicologia muito colonizada. Eu acho que esse é um ponto fundamental da Teoria da Subjetividade: é trazer a visão de uma autor latinoamericano. É difícil você pensar que um autor latinoamericano vai ter o protagonismo que o Fernando teve, é raríssimo, principalmente pela colonização, mas eu gostaria de chamar atenção para algo que é fundamental para a Psicologia: a tradição de separar o mundo da vida do mundo da teoria. E uma coisa que ele sempre falava e acho que isso é importantíssimo: temos que pensar o mundo da vida a partir das teorias que orientam a forma como a gente pensa os outros problemas. Você não é um teórico separado da vida.

Ana Orofino Teles: Eu só queria complementar essa questão cultural porque ele chegou aqui e ele era muito espontâneo e muito direto. E o brasileiro se melindra muito fácil, toma as questões muito para o pessoal e sofre muito. E ele vinha e ele rasgava, tanto que eu conheço muitas pessoas que não gostavam do Fernando, perguntavam para mim: “Como você o aguenta?”, “Como você convive com essa pessoa?” Então não era qualquer pessoa que conseguia estar assim tão próxima dele, mesmo porque ele era bem rasgado, bem direto e muito exaltado, mas que tinha um quê de cultural, pois ele falava que em Cuba isso era assim, mas no Brasil as pessoas falam pelas costas, são mais falsas, e ele trazia essa transparência. Então ele nos desmontava também muitas vezes e ele tinha esses arrependimentos quanto ele via que ele extrapolava e aí ele batia naquele limite assim do “Poxa, ele me ama, mas ele me odeia...” Aí ele vinha e ficava consternado e falava: “Eu te amo”. Ele tinha essa capacidade. A gente dava uma carona para ele e ia fazendo uma DR no carro, deixava em casa e pronto. A nossa relação seguia.

Daniel Goulart: Era uma pessoa muito intensa.

Ana Orofino Teles: Mas eu sinto que tinha um quê de cultura, foi algo que ele nos trouxe também. Precisamos contextualizar para saber de quem estamos falando.

Valéria Mori: O Fernando tem essa característica de um grande afeto. Eu acho que as pessoas que o acompanharam durante todos esses anos aqui no Brasil têm essa lembrança do grande afeto. Irascível? Sim, mas do grande afeto.

Ana Orofino Teles: A ira é um afeto. (Risos)

Daniel Goulart: E isso de ser uma pessoa extremamente afetiva se expressava nele, por um lado, na questão da irascibilidade, de certos rompantes que ele tinha, mas, por outro, a intensidade da alegria que emanava dele também. A risada dele era ouvida de longe. Quando ele ria e chacoalhava o corpo inteiro, ele preenchia o ambiente e as pessoas se contagiavam com isso. Era uma pessoa de uma alegria contagiante. Me lembro bem dele assim, chegando à sala dos professores no UniCEUB. Era sempre um evento!

Valéria Mori: Ele parava a sala dos professores.

Daniel Goulart: Passou os últimos sete anos enfrentando um câncer, com muitos momentos difíceis, com muitos momentos sofridos, dolorosos, mas ele cultivava uma alegria poética no cotidiano… chegar na universidade para ele era uma alegria. Ele chegava rindo, sabe? Sempre fazendo uma piada, seja com um aluno, ou com um colega... e isso transformava as pessoas em volta. Tem uma amiga nossa que fala: “Eu não conheço uma pessoa com tamanha conexão com a vida”, e acho que isso marca muito o Fernando. E por isso ele é marcante: ele despertava afetos permanentemente no outro também.

Ana Orofino Teles: Agora uma coisa que eu quero deixar dita: para mim ele era genial. Para mim o Fernando era superdotado, ele não era como nós. Ele era diferente. Para mim, o que acontece comigo quando ele chega na graduação e que ele começa a trazer conceitos que ele produziu, eu olho para ele e falo: “Eu estou do lado de alguém que tem uma teoria.”

Valéria Mori: Lembra que nessa época ele não dizia ainda que tinha uma teoria…

Ana Orofino Teles: Mas ele já começava a pensar categorias...

Valéria Mori: Sim, já pensava sentido subjetivo, subjetividade…

Ana Orofino Teles: Eu acho que eu encontro com ele antes de você porque a gente estava na graduação.

Valéria Mori: Foi um ano depois.

Ana Orofino Teles: Quando ele estava chegando no Brasil, ele trazia esse diferencial porque todos os nossos professores da UnB nos reportavam aos grandes fundadores, os clássicos, e ele se apresenta para nós como: “Eu penso isso”. E ele olha para você e fala: “Você pensa”. É esse o grande diferencial do Fernando quando ele se insere no Brasil e que provoca tanto ciúme também porque a academia é um espaço de competição, um espaço de muita vaidade, de muita competição pela verdade, pela melhor abordagem, pela melhor estratégia, e o Fernando vem dizendo: “Olha, nós somos seres humanos, nós pensamos, nós produzimos, nós somos criativos.”

Valéria Mori: Eu acho que esse ponto dele é fundamental porque ele já era um nome em Cuba, e na Psicologia latinoamericana ele tem um espaço muito importante. Ele dialogou com muitas figuras da Psicologia latinoamericana que vão trazendo todo um diferencial para a forma como pensamos a própria Psicologia no Brasil. Penso que esse é um marco para a nossa Psicologia que eu sinto que às vezes os nossos próprios alunos, mesmo quando ele estava vivo, nunca dimensionaram o tamanho do Fernando. Isso eu me ressinto ainda hoje. Pois penso que muitas vezes ele não teve o reconhecimento que merecia. Os processos de vaidade muitas vezes impediram que ele tivesse o reconhecimento merecido nos espaços em que ele transitou. Porque ele também era polêmico e com posicionamentos muito próprios. O que muitas vezes pode levar a desencontros.

Daniel Goulart: Retomando um pouco a perspectiva histórica, quando ele volta do doutorado na União Soviética, que ele concluiu em 1979, ele assume em pouco tempo a diretoria da Faculdade de Psicologia da Universidade de Havana. Isso coincide com uma intensificação, ainda no começo dos anos 1980, de um diálogo muito intenso com os principais nomes da Psicologia Social latinoamericana, entre eles Ignacio Martín-Baró, Silvia Lane no Brasil, Bernardo Jiménez e Maritza Montero. Estes são alguns dos expoentes da Psicologia latinoamericana e o Fernando sempre trouxe também dentro desse grupo um lugar próprio, defendendo, entre outras questões, o lugar da personalidade para discutir os processos de mudança social...

Valéria Mori: Porque naquela época se discutia identidade, que era a diferença que ele tinha com a Silvia Lane por exemplo...

Daniel Goulart: E geralmente se explicava os processos sociais de mudança em uma perspectiva mais macro, mas não como o indivíduo também fazia parte desses processos de mudança social e como processos de mudança social que não passam por uma personalização, que era o termo que ele usava na época, de fato correm o risco de se tornarem panaceias, naturalizações, reificações, e perdem o caráter transformador e revolucionário do momento prévio. Então, ele tem esse trânsito e esse diálogo como educador, mas como autor também. A importância dele nesse diálogo e o valor que ele já tinha na Psicologia como um todo culmina, em 1991 no Prêmio Interamericano de Psicologia. Nesse momento, ele já tinha uma obra publicada, tendo já, também, defendido o Doutorado em Ciências pelo Instituto de Psicologia da Academia de Ciências da União Soviética (1987). Ele é o único psicólogo latinoamericano a ter o título de Doutor em Ciências na União Soviética. Isso é algo que marca sua trajetória também. No Doutorado em Ciências na União Soviética, diferente daqui e de outros lugares, você defende uma linha de pesquisa, e não uma tese. Então, ele já tinha ali uma contribuição autoral entre os temas da personalidade, da comunicação, da educação, da saúde, ou seja, dentro de uma nova concepção de desenvolvimento que ele já estava gestando, que não era ainda a Teoria da Subjetividade, mas já tinha um reconhecimento internacional.

Valéria Mori: Ele sempre foi uma figura muito importante nesse cenário, tanto é que até hoje, quando a gente transita em diferentes congressos, o Fernando é uma figura importante, falada etc. Penso que esse é um ponto para ser marcado também. E uma questão mais anedótica que vale destacar é que Silvia Lane dizia que o Fernando falava muito melhor do que escrevia. Eu sempre brinco com os alunos que eu acompanhei a obra dele aqui, dos primeiros textos que ele traz para o Brasil, da forma como ele foi pensando a própria teoria e é muito interessante porque a forma como isso foi se refinando ao longo do tempo é muito bonita de acompanhar. Quem pegou aquele primeiro livro roxinho, que você se matava para ler, e percebe como ele vai aprimorando teoricamente o próprio pensamento, e nós que o acompanhamos vemos as mudanças teóricas que vão acontecendo até o fim da vida dele.

Daniel Goulart: Isso é uma marca de um grande autor. Todos os grandes autores, de alguma forma, estão sempre desafiando seu próprio pensamento.

Valéria Mori: E ele constantemente reelaborava o que ele escrevia. Tem textos em que ele diz: “Quando eu discuti sentido dessa forma, eu discuti dessa maneira, mas hoje eu já penso dessa forma”. E eu acho que nós três tivemos um grande privilégio que foi poder conviver no cotidiano com ele. Você poder dar carona para a pessoa que produz a teoria não tem preço. Na hora que você está dirigindo, você pergunta: “Fernando, o que você acha de tal coisa?” Eu me lembro que naquele livro vermelhinho dele, ele escreveu assim: “O indicador é a revelação do sentido subjetivo”. Eu li aquilo e pensei: “Gente, isso não está certo”. Eu peguei o telefone na hora e falei: “Fernando, no livro vermelhinho você fala que o indicador é a revelação do sentido subjetivo, mas não é isso”. E ele falou: “Nossa, eu estava doido quando eu escrevi”. E então ele começa a conversar comigo e vai me explicando a questão do indicador, como ele tinha pensado na hora que ele escreveu. Que privilégio poder fazer isso! Eu acho que nós aqui que fomos formados por ele tivemos esse privilégio de poder checar com ele a todo momento, e de uma forma muito afetuosa, não do professor didata que senta e diz: “Então,.. veja...”. Não! De conversar com a gente no mesmo plano e trazer isso para o mundo do cotidiano. Eu acho que essa é a marca do grande mestre. E ele foi um grande mestre.

Ana Orofino Teles: Uma outra coisa muito importante: a formação da Psicologia na UnB é uma formação muito científica. Todos nós saímos de lá do curso de Psicologia pesquisadores… Todos os meus professores, durante todo o meu curso, estimularam a investigação dentro dos marcos que regiam, à época, que era por uma ciência determinista, por uma ciência mecanicista, e aí, então, que o departamento da Psicologia do Desenvolvimento começa a abrir essa perspectiva. Então assim: Existem outras formas de fazer ciência e são legítimas. E o Fernando chega e ele traz um livro já escrito que é O problema epistemológico da Psicologia, publicado em 1993 em Cuba e aquilo nos salva. Nós pudemos abrir, trazer para dentro da universidade um jeito de fazer ciência diferente e colocando a Psicologia dentro de uma discussão afirmando que ela não pode ser regida por um paradigma mecanicista. Então no doutorado, quando eu organizo cronologicamente as publicações do Fernando para fazer as leituras, e eu releio esse livro, que tinha lido lá na Graduação, eu falo: “Fernando, autografa esse livro, por favor! Porque esse para mim é o mais importante do nosso encontro acadêmico”. Para mim, ele foi alguém que disse que é legítimo fazer pesquisa em Psicologia a partir de uma visão de complexidade que não seja só uma visão de determinismo e de comportamentalismo, e que a Psicologia é muito mais que comportamento, e é possível pesquisar de outra forma e de maneira legítima.

Valéria Mori: E de uma Psicologia latinoamericana. Acho que esse é um ponto fundamental.

Daniel Goulart: Entrando na questão da subjetividade mesmo, o que ele dizia é que não basta assumir os processos como complexos. É preciso, em cada campo específico, desenvolver conceitos e teorias que sejam capazes e sensíveis para acompanhar esses processos na pesquisa e na prática. E, ao colocar paulatinamente a subjetividade como foco, ele se deparou com muitos desafios teóricos obviamente. E é o que está na fala da Ana agora. Os desafios teóricos também representam desafios epistemológicos e metodológicos. Ele não só desenvolveu a Teoria da Subjetividade do ponto de vista de mais um referencial na Psicologia. Ele, ao fazer isso, propôs repensar as próprias bases de construção científica e como isso se expressa na dimensão metodológica. Ele elaborou uma concepção de fazer pesquisa muito diferente das dominantes na Psicologia até então. De fato, o Fernando é, atualmente, reconhecido como autor em diferentes linhas: na perspectiva histórico-cultural da Psicologia, que se fundamentou no legado russo (até o final o Fernando era um autor nesse campo pela discussão histórica que ele faz, pela forma crítica que ele lê os autores mais proeminentes desse campo), na elaboração da Teoria da Subjetividade (o que é a Teoria da Subjetividade, como isso se desdobra na educação, na saúde, na psicoterapia, nas práticas comunitárias) e, por outro lado, o Fernando epistemólogo, que de fato tem uma importância grande para repensar as ciências humanas. Essa contribuição transcende a disciplina da Psicologia. É uma contribuição de uma envergadura para pensar a própria ciência, para repensar como se desenvolve a ciência, quais são os critérios de legitimidade da ciência, quais são as possibilidades de produção de conhecimento. Nessa discussão, há também um diálogo com epistemólogos, filósofos, sociólogos, antropólogos... Fernando foi construindo uma plataforma de pensamento na qual existe uma unidade entre teoria, epistemologia e método. Não só ele propõe o que estamos estudando, mas quais são os fundamentos e como a gente faz isso.

Valéria Mori: Um ponto fundamental do que você levanta é representamos a ideia da pesquisa como um processo dissociado do vivido. O fazer pesquisa acompanha também a própria prática. Aquilo que nós na ciência fazemos como produção de saber para uma representação de mundo, para avançar em uma forma de conhecimento, se traduz não só em uma prática naquele momento, mas a própria prática nos leva a novas reflexões dentro da própria ciência. Esse é um ponto fundamental do pensamento do Fernando: a não dicotomização dos diferentes campos, dentro da própria Psicologia, porque sinto que essa é uma característica que marca a concepção da nossa Psicologia, ou seja, alguém que pensa pesquisa está dissociado da prática. A minha própria prática como psicoterapeuta me leva a pensar problemas que levam a discussões metodológicas e a discussões dentro do próprio campo da Psicologia a partir da pesquisa, e que alimentam da mesma forma a minha própria prática. Esse é um ponto central que sempre foi muito estimulado por ele.

Daniel Goulart: Vinculado a isso que a Valéria fala, essa indissociabilidade entre pesquisa e prática, existe também um fundamento epistemológico muito importante articulado à Teoria da Subjetividade: não se explica os processos subjetivo a priori. A Teoria da Subjetividade não tem como pretensão, por exemplo, dizer o que é o autismo, o que é a depressão, ou a equizofrenia. Não busca uma forma de explicar por categorias com conteúdos que explicam processos da vida, da prática profissional de forma a priori. Ele oferece um sistema de conceitos articulados, que operam como ferramenta do pensamento para pensar uma realidade. Não se trata de conceitos que oferecem uma explicação para ser aplicada na realidade, mas sim conceitos que operam como recursos para o pensamento. Claro que existem definições de conceitos prévias, tais como subjetividade (individual e social), sentido subjetivo, configuração subjetiva, agente e sujeito. Existem conceitos fornecem a base para representar a subjetividade de certa forma, mas eles somente ganham vida na reflexão singular e criativa a partir do diálogo com o outro.

Valéria Mori: Você não cola a categoria subjetividade em um processo. Acompanhamos o processo para tentar entender como a teoria pode significa-lo. Essa é a grande diferença da ideia de aplicação.

Ana Orofino Teles: Eu acho que uma das coisas que nos uniu ao Fernando também é nossa paixão. Eu era uma pensadora apaixonada quando estava na Graduação e encontro com ele e lembro das angústias de corredor falando: “Fernando, eu não sou psicóloga, eu sou filósofa!”. E ele falava: “Ana, todo bom psicólogo é filósofo”. E quando nós estamos já no Doutorado na Educação, aí eu caio em mim e penso: “Eu não sou psicóloga, nem filósofa, nem educadora. Eu sou uma subjetivóloga”, porque é uma forma de entender o mundo e o ser humano. É uma visão de mundo e de tudo, de ciência e de conhecimento. Às vezes eu estou com a minha filha lá na vida e penso: “É um saco ser quem eu sou porque eu fico vendo nas entrelinhas, eu fico escutando o não dito na convivência com os nossos”. Às vezes eu entro no Facebook e falo: “Caramba! O que é isso daqui?” Porque você ganha um filtro para percepção do mundo que te dá uma sutileza, uma capacidade de ir na entrelinha mesmo. O Fernando sempre chamava a nossa atenção quando nós íamos fazer pesquisa e conversar com as pessoas que eram os nossos parceiros, aqueles sujeitos que nós estávamos estudando, e falava: “Não veja só o que ele disse. O que ele não disse?” Então a subjetividade tem isso, não é só o explícito, é o implícito. Não é só o objetivo, é o que está subjetivo. Não é só o sentimento, é o pensamento que vem junto. É o pensamento apaixonado. Então quando eu falava isso para os meus alunos em sala de aula eu dizia: “Eu penso sentindo, eu sinto pensando”. E é mesmo, não está separado. E foi a coisa que nós mais amamos quando fomos trabalhar com as crianças na escola, ele orientando o nosso estágio na graduação. Eu senti que, na cabeça da criança, família e escola não estão separadas, não existe um muro que separa. Ele é colocado, ele é construído, mas não necessariamente ele é real. O que é o real e o que é o irreal? E a subjetividade é isso.

Valéria Mori: A grande diferença que marca a nossa formação da sua, Daniel, é que a gente vem de uma Psicologia muito simplificadora, de fato da Psicologia dos rótulos e da teoria como aplicação. Se temos hoje ainda 20% das pessoas que ainda discutem isso, na nossa época eram 90%. E eu acho que o grande susto que eu levei foi encontrar alguém com um pensamento como o do Fernando. É muito mobilizador você começar a pensar a Psicologia dentro de uma lógica muito mais sistêmica, de processos, em que você vai integrando uma perspectiva de pensar. Porque a ideia de subjetividade não é uma idea que vai fragmentar a pessoa: o que está dentro, o que está fora, o que é social, o que é individual, a cultura é outra coisa. Não! É essa ideia da configuração. A ideia de configuração que ele trabalha, a lógica configuracional é uma questão central que sai dessas separações fáceis que a gente acaba usando para explicar o humano.

Ana Orofino Teles: E que é para avançar para além do Estruturalismo porque nisso estava a personalidade como uma estrutura, era isso que vigorava, era o que estava acontecendo na Europa. E o Fernando entra em um movimento para romper com essa visão de mundo.

Daniel Goulart: Ele rompe com dois extremos: por um lado, esse extremo de entender a Psicologia com base em estruturas fixas, universais, padronizadas, que se desdobra em uma prática psicológica e uma forma de fazer pesquisa que se voltam para trabalhar exclusivamente o indivíduo. Fernando rompe com isso, ao entender que a subjetividade não é um processo que se reduz ao indivíduo, mas que está simultaneamente organizado no indivíduo e no social. Por outro lado, ele também rompe com outra tendência do pensamento crítico que emergiu com muita força e que chega à psicologia principalmente na década de 1980 e 1990, que é a redução dos processos humanos à linguagem, ao simbólico. Você tem essa tendência de mais de um século na Psicologia de explicar o ser humano a partir do indivíduo, uma lógica individualista do ser humano. E uma corrente crítica na filosofia começa a partir da década de 1960, com o giro linguístico, e vai ganhando força na década de 1980 e 1990. Ela rompe com esse individualismo e com a naturalização dos processos, de tal forma que a ênfase majoritária passa a estar nas construções simbólicas, ou seja, vai para outro extremo. Então, passam a vigorar categorias importantes para o pensamento contemprâneo, como construção social, discurso, poder, relações, narrativas, linguagem ganha um peso importante, o que foi sem dúvida algo muito importante.

Valéria Mori: Como categorias elas são muito importantes, mas não podem ser a única forma de explicação.

Daniel Goulart: Exato, porque aí você perde a tensão individual/social, mas fundamentalmente perde de vista como se singulariza os processos sociais e culturais e como essa singularização é importante para entender os processos de mudança mais amplos também. Eu diria que o caminho que ele vai traçando com a Teoria da Subjetividade rompe tanto com o individualismo, como com a sociologização dos processos humanos, permitindo a explicação da qualidade do que a gente vive, denominados processos subjetivos, que se articulam tanto individual como socialmente nas instituições, nos processos comunitários, nos espaços mais amplos. São processos inconscientes e fundamentais, porque matizam a nossa vida. A subjetividade, segundo González Rey, enquanto sistema simbólico-emocional, é simultaneamente processo e organização. São, por um lado, processos fluídos, no sentido de que são dinâmicos e gerados de forma imprevisíveis no curso da experiência. A categoria que dá conta dessa dimensão processual é a de sentidos subjetivos. Os sentidos subjetivos não podem ser explicados por estruturas, padrões, pelo que é explícito, comportamento. Existe uma dinamicidade para além do controle e da previsão, que, entretanto, não é uma dinamicidade totalmente caótica, que não permite certas formas de organização. Nesse sentido, o conceito de configuração emerge em seu valor heurístico para explicar essa dimensão da organização, isto é, como pessoas, figuras, processos na vida de um indivíduo ou de um grupo social, que são significativos para essas pessoas ou para esses grupos, se organizam de forma relativamente estável e de maneira articulada à história singular desse indivíduo ou grupo social, bem como aos diversos espaços sociais que ele integra. Por exemplo: um aluno na escola traz o cosmos de seu mundo para dentro da escola: seu universo afetivo, que vai se organizando pelas relações na família, com os vizinhos, com a comunidade, a partir de seu lugar de gênero, de raça, de classe social. Tudo isso faz parte da qualidade da experiência dele na escola. E como a gente pode estudar isso? Fernando propõe que a construção do diálogo com esse aluno, a partir de um vínculo no qual ele se sinta confiante e confortável para se expressar, é a base para a geração de informações importantes, sobre as quais se vai construir interpretações dos processos subjetivos implicados naquela trajetória. Hoje a gente vê no campo da Educação uma tendência muito forte à patologização da infância, de modo a entender os processos que fogem à expectativa social como transtornos mentais padronizados, deficiência intelectual ou como processos cognitivos com disfuncionalidades na criança, sendo que é totalmente negligenciado desse olhar o mundo afetivo da criança, as relações dela, as questões culturais... a própria escola faz isso. Então, a Teoria da Subjetividade permite uma representação da educação escolar, por exemplo, que fundamenta práticas afinadas à complexidade de como o campo integra as mais diversas instâncias sociais e individuais.

Valéria Mori: É uma trama se organizando, não algo linear...

Daniel Goulart: No campo da saúde mental, a título de outro exemplo, esse referencial permite romper com as categorias psicopatológicas como uma forma de explicação universalizante dos processos psicológicos. Claro que as categorias psicopatológicas explicam certos processos, explicam padrões comportamentais, explicam um certo conjunto de critérios para definir certas categorias, como depressão, esquizofrenia, transtorno bipolar etc. Mas isso diz muito pouco das configurações subjetivas que se articulam singularmente nas pessoas e nos grupos sociais. É interessante ver como pessoas com o mesmo diagnóstico têm histórias de vida muito singulares, recursos muito singulares, processos pelos quais elas sofrem que são singulares e, portanto, o trabalho com elas deve seguir essa singularidade e não seguir a padronização e a generalização indutiva. A Teoria da Subjetividade nos permite avançar na geração de inteligibilidades desses processos, entendendo a possibilidade do indivíduo e dos grupos sociais emergirem como agentes e sujeitos dos seus processos de vida. O conceito de sujeito representa uma condição individual e social, que marca a abertura de novos campos de subjetivação para além da normatização social e para além da forma como se cristalizam os processos subjetivos individualmente também. O sujeito não é definido pelos estímulos ambientais, ou pela “estrutura social” a priori. É um conceito com valor heurístico para explicar, por exemplo, processos de mudança na história, como no caso das revoluções sociais. Isso não se explica por categorias externas, mas pela dinâmica viva que o movimento social toma em determinado momento, por sua capacidade geradora que vai transformar os rumos da história de um lugar. Essas revoluções acontecem também individualmente quando uma pessoa está passando por uma determinada crise na vida, em que ela não consegue gerar alternativas frente a certas situações de sofrimento, de modo que ela pode ir gerando recursos e ir configurando aquilo de tal forma a começar a abrir novos caminhos de vida.

Valéria Mori: E eu acho que ali é quando ele vivia a teoria. Porque uma vez que você reconhece a pessoa no lugar da produção, como ele está colocando, você estimula seus alunos a serem sujeitos da sua própria experiência. O fato dele teoricamente enxergar que a pessoa tem capacidade de produzir subjetivamente para abrir um caminho na própria vida, o faz enxergar o seus próprios estudantes de um outro lugar. Não alguém que aprende passivamente, mas como alguém que eu estimulo, provoco, tensiono para aquela pessoa produzir subjetivamente naquilo que vive.

Ana Orofino Teles: Esse é o papel do psicoterapeuta também… Como mãe, como psicoterapeurta, eu não devo te dizer como as coisas devem ser feitas, eu devo te provocar para que você ache o seu caminho, e os teus recursos próprios para lidar com as situações.

Valéria Mori: Ele não via a subjetividade como categoria e processo como alguma coisa que você doma ou que você leva o outro a, ele vê como um processo que é produzido pela própria pessoa nessa trama, nessa ideia de configuração, e que os diferentes espaços são mobilizadores disso.

Daniel Goulart: Isso não cai em um individualismo em hipótese alguma, porque assumir a possibilidade de o indivíduo emergir como sujeito de um grupo social específico, ou de um grupo social emergir como sujeito social, não implica a desconsideração do contexto, das questões sociais e culturais mais amplas, ou das questões socioeconômicas. Não implica negar, portanto, processos que fazem parte da gênese dos processos subjetivos. Mas a questão é não cair em um determinismo. Esses processos não determinam a produção subjetiva das pessoas, mas oferecem recursos simbólicos e relacionais, que podem se configurar como oportunidades favorecedoras de certas produções subjetivas. De fato, a produção subjetiva singular não é um epifenômeno do social, mas uma parte intrínseca e constitutiva da experiência social e cultural.



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